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A DIETA REVOLUCIONÁRIA DO DR. BUNTING (trecho da apresentação)

Nelson Ascher

Nascido com o século XX, Basil Bunting levou uma vida à parte, não raro marginalizada e marcada pela penúria, mas nem tanto por azar ou acidente, quanto por escolhas assumidas, a primeira das quais, consequência de sua educação quaker e, portanto pacifista radical, foi se recusar, ainda adolescente, a lutar na Primeira Guerra. Já na Segunda Guerra, uma guerra muito diferente, ele, também um homem muito diferente do que havia sido, fez questão absoluta de se engajar, e sua participação foi mais séria, significativa e repleta de episódios marcantes do que a de qualquer outro autor de seu tempo ou geração. Quanto viu e fez durante o conflito é matéria-prima central de sua mínima epopeia, e tal envolvimento com a realidade “real” filtrado durante uma longa vida por uma lucidez invulgar (que lhe permitiu, por exemplo, censurar impiedosamente a estupidez política de seu mestre e amigo Ezra Pound sem deixar por um segundo sequer de reconhecer-lhe a grandeza literária) tornam o que quer que escrevesse mais interessante, em princípio, do que a mais rebuscada criação de outros poetas que, por imaginativos que fossem ou sejam, têm, como horizonte existencial, o pátio interno de seu departamento universitário. Apesar disso, sua automarginalização social contribuiu para a marginalização de sua poesia, que só começou a atrair um círculo consistente de leitores com a publicação de “Briggflatts”. Vagarosamente desde então esse círculo tem se ampliado e, graças ao excelente trabalho de Felipe Fortuna, inclui agora o Brasil e a nossa língua. Convém observar que, ainda não muito conhecido em seu próprio país, Bunting mal foi traduzido ainda para outras línguas.

E há boas razões para isso. Devido à extrema densidade, até mesmo seus conterrâneos acham difícil sua poesia, que exige sucessivas leituras e, não raro, certo aparato crítico, para começar a ser entendida (pelo menos no sentido em que um poema é entendido). Traduzi-la, então, está entre os maiores desafios que existem na área. Deve-se levar em consideração que, como a mais ampla, variada e consistente tradição poética do ocidente, e também uma das mais antigas e contínuas, a poesia de língua inglesa foi incessantemente refinada por uma série de grandes nomes, tornando-se, com o auxílio de peculiaridades do idioma, extremamente sintética, expressiva, sugestiva. Traduzi-la para uma língua latina é sempre uma operação complexa que, quando bem-sucedida, rende resultados diferenciados. Ademais, desde os anos 20/30 a poesia anglo-americana e irlandesa se tornou um modelo para as demais, de modo que traduzi-la bem tem sido, concomitantemente, uma intervenção direta no futuro imediato da poesia escrita na língua do tradutor. Ezra Pound e e.e. cummings tiveram, traduzidos, uma importância para a poesia brasileira relativamente recente comparável, em gerações anteriores, à de nomes franceses ou francófonos como Baudelaire, Verlaine, Apollinaire e Blaise Cendrars, este último, modelo e inspiração de boa parte de nossa poesia modernista.

A notável tradução que Fortuna faz da autobiografia poética do inglês tem tudo para ser um modelo não menos importante. Num ambiente como o nosso, no qual, quanto mais fácil se torna acessar à cultura internacional, menos curiosidade se mostra por ela, um ambiente caracterizado pela preguiça, por dogmas simplistas, reputações jamais questionadas, imperícia formal e anemia conteudística, elogios fáceis, pelo oportunismo puro e simples, as qualificações que o tradutor põe a serviço do original são raras. O poeta brasileiro já demonstrou, tanto na sua própria obra como em suas traduções anteriores, um domínio e perícia formais, um repertório de recursos e tradições, uma familiaridade com os mais diferentes poetas oriundos dos mais diversos lugares, enfim, tanto o que falta em nosso país quanto o que é necessário para levar a cabo uma exigente tarefa tradutória. Mas nada disso, em si, garantiria um bom resultado se não estivesse associado tanto a uma comprovada paixão pela poesia em geral e por esse poeta individual, quanto a uma capacidade obsessiva de trabalho. A presença de tais requisitos se evidencia na qualidade dos resultados.

Uma poesia como a de Bunting é quase o oposto da maior parte da lírica linguaruda que se escreve em nosso país. E a boquirrotice desta e manifesta independentemente da extensão de seus produtos, pois, se Os Lusíadas são concisos, na medida em que não há neles uma palavra excessiva, entre nós até os haicais têm, na sua maioria, pelo menos três versos sobrando. Trazido à nossa terra de palmeiras esguias e de poesia balofa, “Briggflats” funciona como um modelo de regime: A Dieta Revolucionária do Dr. Bunting. E, claro, a primeira aplicação dessa dieta é sua própria tradução. Vale a pena enfatizar que o tradutor manteve o texto exemplarmente esbelto, magro e sutilmente musculoso. Só um prolongado convívio íntimo com um original tão difícil, cheio de armadilhas, quase intratável às vezes, é capaz de render algo similar, um texto a respeito do qual, o poeta brasileiro poderia dizer (como disse alhures): “Agora eu já não sei / se este poema é meu”. Aliás, ele também descreve antecipadoramente, se bem que noutro contexto, o efeito que a operação toda pode ter tido sobre si mesmo: “Escrever ficou mais lento. / Como se a caixa se abrisse para / dentro de outra caixa. / Antes era mais simples (…)” E, se bem que o próprio Bunting tivesse não poucas reservas a respeito de T.S. Eliot, um serviço quase militar em tempos de guerra, que é meio pelo que passa quem se disponha a traduzir “Briggflatts”, evoca um verso famoso do poeta anglo-americano: “Depois de tal conhecimento, que perdão?”

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