Durante as minhas férias de adolescente, quando abandonava um pouco toda promessa de sol do Rio de Janeiro, e perseguia uma atmosfera mais soturna na poesia do Simbolismo, descobri pelo menos um poema que me impressionou intensamente: “A Cabeça de Corvo”. Nele, Alphonsus de Guimaraens descrevia, ao mesmo tempo, a trivialidade da vida de um escritor em seu ambiente de trabalho; a contemplação de um objeto funesto que guardava a tinta com a qual escrevia seus poemas; enfim, um certo desespero que a ave-tinteiro lhe causava, confundindo-se com o seu psiquismo, magistralmente definido já nas duas primeiras estrofes:
Na mesa, quando em meio à noite lenta
Escrevo antes que o sono me adormeça,
Tenho o negro tinteiro que a cabeça
De um corvo representa.
A contemplá-lo mudamente fico
E numa dor atroz mais me concentro:
E entreabrindo-lhe o grande e fino bico,
Meto-lhe a pena goela a dentro. [2]
O que me surpreendia ainda mais, naqueles verões, era a relação entre o poeta e o louco – confessada por quase todos os poetas e, até, procurada como uma necessidade para a legitimação do seu ofício. Anos depois, quando o teenager se evaporou e se transformou, no máximo, em menino antigo, descobri a coletânea de Duque-Costa (1894-l977) – poeta que só constava de antologias monumentais, como fez Andrade Muricy em seu Panorama do movimento simbolista brasileiro (l952. Porém, o poeta só consta da 2a edição, de l973). Obviamente, Duque-Costa não possui a mesma dimensão de Alphonsus de Guimaraens. O Aquele poeta não quis sequer reunir a sua obra em livro, o que para muitos pode ser discrição, e abandono para outros tantos. Mas Duque-Costa publicava de tempos em tempos na imprensa belle-époque, cujo gosto decorativo recomendava emoldurar o soneto com as vinhetas as mais elegantes e onduladas; por outro lado, alguns de seus poucos poemas foram escritos já nos anos 50 – quem sabe se por incentivo de certa geração leda e acadêmica que detonava versos neoparnasianos e protossimbolistas? Desse modo, se a poesia não foi um constante ardor escrito em sua vida, como foi para o poeta de Dona mística (1900), e até escrito na vida deste com algum fogo penitente, o poeta Duque-Costa permanecia com alguma chama: e ela me causou muita estranheza.
Sobretudo porque o bizarro e o insólito me divertiam: comparar o amor a uma doença, o pesar a um prazer, e o movimento do mar à epilepsia satisfaziam à pequena revolta de que eu precisava. Apenas que eu descobri o poeta mais tarde, e a antiga revolta que encontrara em sua poesia era a novidade de que eu também precisava no estudo da tradição e da ruptura literária. Duque-Costa, poeta menor, como tão perversamente se aprende a classificar o metro da mestria, foi o único escritor daquela época em que eu lia essa ousadia transitiva confessada à alguma amada, musa moderna:
Tua Beleza dói o meu êxtase… [3]
Além disso, contrariando toda sisudez que permitiu a Augusto dos Anjos descobrir a belíssima palavra “parasseleno” (em “As Cismas do Destino”), mas fez com que “undiflavando” se imiscuísse no vocabulário de Cruz e Sousa (em “Risadas”), o poeta de “Rapsódia da Hora Parada”, o que já é um achado, tinha alguma predileção por justaposições, grafando “hora-em-febre”, “hora-verde-cólera”, invenções publicadas na revista espiritual Festa no ano macunaímico de l928 – e, em outros poemas, “órbitas-abismos”, “êxtase-tédio”, “saudade-irreal” [4]. Duque Costa vivia – como tantos poetas adoentados pelo estilo de uma época em que o primado da ciência aniquilava os sentimentos sublimes – confundindo a nevrose e o crepúsculo, ou às vezes se exilando de si mesmo para viver nos sentidos de outrem. A preferência simbolista pelas zonas intermediárias (ou seja: tanto o pôr do sol quanto a agonia, tanto o outono quanto o sonho) o atacava também, e talvez de modo mais contundente, mais definitivo, mais trágico:
é a hora estagnada
Nos pântanos e nas pupilas dos suicidas!
A ideia de exílio, na poesia de Duque-Costa, revela justamente uma qualidade moderna de seu estilo: e, desse modo, acentuando uma cisão que se assemelha à confessada numa quadra famosa de Mário de Sá-Carneiro, ou ainda, mais sutilmente, a distância quase abissal entre os desejos e os atos, ele escrevia em “Balada Patética” e na parte IV de “Filme de Véspera de Natal ou Reveria de Um Poeta Que Não Tinha Ninguém”:
Eu me olhava de longe, de nunca mais.
parecia que o meu olhar queria
fugir dos meus olhos;
A predileção do poeta pelo visual talvez não seja apenas viço ou vício de uma personalidade poética – tal como em Cruz e Sousa é a música, tendência verlainiana por excelência, o tônus primordial dos versos, e em Augusto dos Anjos a tragicidade do tato. Como a produção de Duque-Costa se estendeu de mais ou menos 1912 até cerca de l950, sempre esparsa, sempre dispersa em publicações em geral mergulhadas no provincianismo ou na futilidade, a sua poesia revelou-se exposta a muitas sensibilidades. Assim, a presença do verso livre, quando o modernismo já pulicara, embora disfarçados de versos metrificados, os primeiros de Manuel Bandeira; assim, também, aquela palavra “filme”, que demonstra mais uma vez a influência das técnicas de percepção na literatura – num século que conheceu o gramofone, o automóvel e o cinematógrafo, o que modificava a velocidade do mundo. [5] Embora escrito – ou, quem sabe, terminado – em l933, o poema guarda muito dessa percepção que mescla o olhar pessoal à angústia da cidade:
…E as minhas pupilas parece
que vão rolando, nos raios
das rodas dos automóveis.
Mas não se pense que o poeta Duque-Costa esteja impregnado dessa modernidade: tudo, nele, é sintoma de um poeta irregular. E, por isso, é possível flagrar momentos de satanismo ou de anacrônico gosto lexical ou, tão antigo, obsessões que pertencem à idade romântica. O elucidativo estudo de Antonio Candido, “Os Primeiros Baudelairianos”, examina a poesia dos “poetas secundários” que, influenciados pelo escritor de Les fleurs du mal (l857), introduziram a partir de l870 os seus temas no Brasil, com as inevitáveis mutações. [6] O satanismo atenuado e a sexualidade acentuada seriam traços evidentes dessa influência, atingindo seu máximo num poeta como Fontoura Xavier. O satanismo de que se valeu Duque-Costa, muito tardiamente, já não trazia o ardor e o desafio anticlericalistas. Em “Blue Devil”, por exemplo, o Lúcifer azulado é comparado ao tédio, que vela a alma e contempla o vazio.
O seu anacronismo, evidenciado no uso pouco expressivo do satanismo, e em alguns outros instantes, talvez já tivesse sido tocado por uma pergunta plenamente angustiada, a primeira de “Rapsódia da Hora Parada”:
Por que, afinal, em mim é muito tarde?!
E vale mesmo perguntar pelo destino dos ultragalicismos como “bruaá” (que reproduz o ruído da palavra francesa brouhaha no verso “que bruaá, que orações, que segredos“, do soneto “O Velho Piano”), ou ainda de “reveria”, que mal traduz o devaneio de rêverie; ou ainda preferir a forma latina “legenda”, mas também influenciada pela francesa légende, em vez de “lenda”. Não há dúvidas de que a atmosfera de “elegâncias decadentes”, assinalada por Antonio Candido naquele artigo, aqui se encontra presente, influenciada pela literatura e pela meditação filosófica chegadas da França.
Por isso, o mesmo poeta que via os carros correrem pelas avenidas ironiza a permanência de um romantismo puramente literário nos últimos tercetos do soneto IV de “Flor Sentimental” e de “Lótus”, em que se lê:
Vãs ilusões. Juras de amor… repele-as…
E irá morrer num hospital, sonhando
que tinha sido a Dama das Camélias!
Aquele satanismo, afinal, pode ter sido uma das muitas e por vezes confusas maneiras com que Duque-Costa resolvera expressar o que era mais sintomático em seu tempo – sintomático, aliás, que surge como a palavra ideal para uma poesia fascinada pelas patologias, especialmente as nervosas. Se em poemas como “Retrato a Carvão” aparece evidente a influência de Cesário Verde – e por que não considerar, sem qualquer sentido pejorativo, que ainda persiste a influência de Baudelaire, dessa vez em segunda mão? -, a mistura inusitada e algo prosaica (“Contrariedades”, do poeta português, e aquele poema rimam “cigarro” com “bizarro”), parece convergir para o coloquial-irônico tão bem definido por Edmund Wilson em seu estudo sobre o Simbolismo. A Milady de Duque-Costa possui, ao contrário da aristocrata descrita por Cesário Verde, apenas uma “capa coimbrã”, e não as “toilletes complicadas”, porém sua alvura e sua esquisitice e elevam para um plano de extremo e doentio Ideal:
Mas, surge às vezes, tão irrequieta e nervosa,
como uma labareda harmoniosa,
ardendo sob a capa coimbrã:
que, se a levassem a um eletrocardiograma,
desenharia a emaranhada trama
do sistema nervoso de uma rã!
A reunião dos poemas de Duque-Costa em livro, por isso, equivale a uma descoberta – e, especialmente no simbolismo, quando os poetas menores foram tão eloquentes, o seu exemplo vale para todos aqueles que ainda se encontram enclausurados (ou emparedados, para recordar o poeta maior daquele instante, Cruz e Sousa) nas páginas das revistas que quase sempre representavam a insensatez do “sorriso da sociedade”. Assim como um escritor da importância de Adelino Magalhães, com sua ridicularização do provincianismo e do regionalismo na literatura, tem sido continuamente esquecido quando se estudam os primeiros anos modernistas, Duque-Costa pede mais atenção. Seus poemas esparsos têm momentos exasperantes: e que não se duvide ser a exasperação uma prova de que algo decisivo está ocorrendo. Foi o que pensei durante uma adolescência, época em que aquele sentimento periga entre a doença e a filosofia. Porém, uma avaliação mais serena confirma o arroubo juvenil, o que é mais verdadeiro em se tratando de Duque-Costa, que também muito cedo começou a perder os seus verões.
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[1] Suplemento Cultura, O Estado de S. Paulo, 30.01.1988.
[2] Cantos de Amor, Salmos de Prece (Rio de Janeiro: José Aguilar/INL, 1972); p. 7l.
[3] O Livro Poético de Duque-Costa (Rio de Janeiro: Avanço, 1983, 2a edição), p. 59. Todos os trechos citados do poeta provêm desta edição.
[4] É bem verdade que, antes, Sousândrade exacerbara esses procedimentos, não só em relação aos compósitos, mas àquilo que Augusto de Campos e Haroldo de Campos denominaram de “dimensão ‘sintético-ideogrâmica'”. Cf. Revisão de Sousândrade (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, 2a edição, revista e aumentada), p. 94-106.
[5] O estudo benjaminiano e arguto de Flora Süssekind, Cinematógrafo de letras (São Paulo: Companhia das Letras, 1987) trata dessa modernização.
[6] Cf. A educação pela noite (São Paulo: Ática, 1987), p. 23- 38.