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A MAMATA POLÍTICA*

Cicciolina, atriz pornô, caracterizou o raro encontro entre o erotismo e a política. Candidatou-se pelo Partido Radical italiano a uma cadeira de deputado e foi eleita por um segmento majoritariamente masculino, paralisado na fase oral. Exibindo os seios, ela fez recordar a Loba Capitolina, o animal que amamentou Rômulo e Remo, o mito fundador de Roma.

Todos podem ver os seios dela, todos podem tocar nos seios dela: nunca se esteve tão perto do Poder. Os seios de Cicciolina encarnam não apenas a bonança ou as metáforas alimentares; regionalmente, simbolizam a Loba Capitolina, o animal que amamentou Rômulo e Remo, depois de vagarem pelas águas de um rio, dentro de um cesto. Mais tarde, os dois irmãos decidiram voltar ao local em que foram salvos e iniciaram a construção de uma cidade. Contudo, acossado por divergências fraternais, Rômulo matou seu irmão e, sozinho, fundou a cidade de Roma. Agora, Cicciolina (“Fofinha”) alimenta outra lenda: aos 38 anos, eleita pelo Partido Radical, conseguiu anular o sentido vocabular de mulher da vida, convertendo-se em mulher da vida pública, ao lado de homens sisudos e também públicos, numa convivência que promete deslocar algumas regiões da política. Nascida na Hungria, a atriz de filmes pornográficos trouxe para a Itália algo além de seu intenso individualismo. Para Cicciolina, a política tem um só lugar: o corpo. Mas, ao contrário da política do corpo pregada por Fernando Gabeira – que previa, com o gradual desnudamento, uma sensibilidade menos masculina -, Cicciolina ressuscita os machões: ela está pronta para eles. Não tem nada a dizer, mas tem tudo a mostrar.

Os seios de Cicciolina, por isso, transformaram-se em símbolos totalizantes: representam todas as possibilidades eróticas. Tocar neles tem um sentido revigorante, como se fosse possível, pelo simples toque, assimilar uma ideologia ou uma práxis. No entanto, ela escandaliza – porque também politiza a prática da sedução.

Cicciolina: um eleitorado na fase oral

Cicciolina: um eleitorado na fase oral

Na política, o sexo é um grave acidente: não existe vida íntima ou confissão. A res publica (a coisa pública) não deve permanecer confinada ao círculo pessoal, asséptico e isolado. Recentemente, a renúncia de Gary Hart de sua candidatura à presidência pelo Partido Democrata, por causa de um suposto ou evidente envolvimento com a modelo Donna Rice, obrigou-o a um mea culpa doloroso e a um castigo necessário para os que ultrapassam a tentadora fronteira. A mesma infiltração sexual ocorreu na casa do conservador  Le Pen, na França, obrigado a engolir as fotos de sua mulher na edição local de Playboy, ao mesmo tempo em que eram publicados flagrantes de seu (dele) derrière. Mas Cicciolina nada escondeu – percebendo que a exposição da nudez ou dos jogos amorosos é mais generosa com as mulheres. Ao contrário, valendo-se de seios irretocáveis, estimulou a imaginação erótica e solitária com requintes que vão do sadomasoquismo ao voyeurismo engajado.

Ou seja: a mesma imaginação que existe em literatura, onde os seios são freqüentes. Porém, tal como acontece com a palavra seio “em estado de dicionário”, verifica-se primeiramente o sentido de sinuosidade, de enseada ou de golfo. Camões empregou a palavra no sentido clássico de “concavidade”, mas não resistiu às “tetas” quando avistou simples limões, nesta passagem d’Os Lusíadas:

Os formosos limões, ali cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando (IX,56)

Numa de suas odes, o mesmo poeta português relacionou-as à existência erótica:

Em cuja branca teta amor se cria (XI,38)

Seria possível, seguindo esse rastro, conceber uma volumosa antologia de seios, coletânea “De um turbilhão de braços e seios”, como escreveu Olavo Bilac, um dos poetas mais edipianos de nossa poesia, e que declarava no poema “A Um Violinista”:

E eu via rutilar o meu amor perdido,

Belo, de nova luz e de novo encanto cheio,

E um corpo, que supunha há muito consumido,

Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.

Uma leitura perspicaz indicará que só mesmo o recato parnasiano não permitiu que, em lugar de seio, o poeta de Alma inquieta escrevesse “sexo”. Além disso, essa poesia visual faz pensar… No precioso livro que é O Canibalismo Amoroso (1984), A.R. de Sant’Anna estuda o poeta amante como “o canibal que devora só com os olhos”, quando “o ver passa a ser, paradoxalmente, uma espécie de cegueira doida, de vertigem da posse.” E exemplifica com os versos de Martins Fontes:

Com os olhos te dispo, em vivo anseio,

com o olhar te desnudo, alucinado,

provando o fruto virgem de teu seio!

Por outro lado, os seios não sugerem apenas a carne da amante. Ao contrário, e como já foi indicado na referência à Loba Capitolina, os seios também simbolizam as vantagens maternas – o que suavizaria a imagem profundamente sexual de Cicciolina, conferindo-lhe uma atitude menos ativa, esboçada pelo colo materno e pelo afeto que se encerra. Numa passagem culminante das Coéforas, segunda peça de uma trilogia em que Ésquilo ilustra a vitória do patriarcado sobre o matriarcado, ocorre um confronto entre Clitemnestra, que assassinara seu marido, e Orestes, seu filho, que vai matá-la para honrar o pai. Antes, Orestes já havia sonhado com uma serpente terrível, que era, enfim, ele mesmo: “A serpente, saída do mesmo seio que eu, pôs os lábios nos mesmos peitos que me amamentaram, e ao doce leite ela misturou um coágulo de sangue, enquanto a mãe soltava gritos de dor.” Seria essa a hesitação ante o seio materno?

Loba Capitolina: o mito fundador

Loba Capitolina: o mito fundador

Cicciolina representa, assim, um mundo matriarcal, ao mesmo tempo erótico e acolhedor, tépido e pacífico. Com a aparição de seus seios, a atriz pornô indica a obsessão de um eleitorado que se encontra na fase oral. Ela não teria jamais os rigores das guerreiras amazonas – que cortavam pelo menos um seio para ganhar agilidade nos combates. E Cicciolina não tem idéias: ela é pura exposição. No mundo político, sua atitude é tão obscena quanto a de um deputado que percorre o país num jatinho oficial ou que brinca de esconder diamantes, a exibir, sem pudor, seu poderio econômico. A nudez de Cicciolina, no entanto, é de uma ingenuidade avassaladora: pois, assim como Rousseau delineou o “bom selvagem”, promovendo um culto desmedido pelo campo, recusando o progresso desumano da cidade, Cicciolina recomenda a prática do sexo (“Abaixo a energia nuclear, viva a energia sexual” foi o slogan de sua campanha) como paliativo para o caos social. Numa sociedade tão católica quanto a italiana, que convive tradicionalmente com a máfia e o comunismo, Cicciolina representa algumas heresias: é a antivirgem, algo voraz, pérfida e falsa como a cor loura de seus cabelos.

Deve-se observar, ainda, que nenhuma feminista apóia Cicciolina – e não porque seu eleitorado seja primordialmente masculino, mas porque ela expõe a mulher a um novo martírio. É verdade que o feminismo precisaria encarar com a mesma reserva a eleição do jogador de futebol Gianni Rivera e do cantor Domenico Modugno (ambos democratas cristãos), cujo eleitorado é quase todo feminino. Pois o mecanismo é o mesmo: quem poderia eleger, por exemplo, alguém como Julio Iglesias senão as meninas românticas, as donas-de-casa nostálgicas e, enfim, as mulheres enlouquecidas pelo amor? Por sua vez, os eleitores de Cicciolina são utópicos sexuais – aqueles que ainda não encontraram o lugar do sexo e elegeram a sua encarnação mais evidente.

No lugar da opção política, ocorreu uma opção mítica e sexual; no lugar do debate de idéias, abriu-se espaço para uma cena muda e obscena: mas, afinal, uma política conduzida pelo desejo seria mesmo um sintoma de imaturidade? Se a resposta se restringisse ao campo das realizações, seria possível afirmar que Cicciolina, assim como tantos políticos, acena com uma promessa: no seu caso, a possibilidade de transformar as palavras em corpo, e esse enorme corpo numa orgia. Idéia irrealizável, tal como as obras faraônicas. Mas, em certo sentido, a metáfora mais bem acabada do jogo político.

Enganam-se, desse modo, os que pensam ser Cicciolina uma vergonha política ou, mais simplesmente, uma vergonha. A rigor, ela assumiu o seu papel: defende uma só causa – a exposição do corpo. Comparada ao caso brasileiro, não existe diferença entre sua atitude monolítica e a dos que defendem, por exemplo, e como único projeto, a pena de morte ou a permanência dos latifúndios. Cicciolina exibe um corpo encarcerado – e sua reivindicação, como as já citadas, se reduz a uma só, concentrada.

Por outro lado, se Cicciolina não se adequa ao decoro parlamentar – que todos tenham certeza: esse é um problema dos parlamentares. Pois, sendo sua verdadeira profissão a de atriz pornográfica, todo o esforço parlamentar consiste em fazer com que Cicciolina se sinta pouco à vontade naquele ambiente, tornando-a incompatível com as exigências políticas, e afastando o debate de uma indesejável coabitação com a promiscuidade. Contudo, personagem tão erótica, ela desagrega – todos reconhecem sua insuficiência e sua natureza passageira. Terminado o período de amamentação, o que restará? O Partido Radical já se preocupa com isso. A política elegeu Cicciolina; mas nenhum político quer ser seu amigo do peito.

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*Jornal do Brasil, 02.08.1987

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