1. A literatura novíssima que se faz no Brasil tem dois Joões como bem definidos meridianos, um na prosa, outro na poesia: João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. A prosa do escritor de Grande sertão: veredas (1956) é caudal e disseminadora, enquanto a poesia cabralina, cerebral e quase construtivista, revela um discurso de enorme contenção. Assim, as obras que melhor traduzem a “renovação literária” de nosso período pós- moderno subverteram o conceito de prosa e poesia: de um lado, o texto de Rosa, de criação opulenta e neológica; de outro, o rigor de Cabral, traçando argutos limites entre escrita, matemática e artes plásticas. Ambos, contudo, coincidem no zelo extremado que dedicam à palavra, num trabalho de depurado rigor. Se o Modernismo encontrou na Língua Portuguesa uma de suas maiores lutas – tentando trazê-la à força à realidade brasileira ou, mais exatamente, ao plano de sua oralidade -, com Rosa e Cabral a Língua se torna sujeito do texto: passa a não existir a intenção de reproduzir vocabularmente uma realidade de forma “naturalista”, mas de inventá-la. É lícito afirmar que cada um deles elaborou uma gramática própria (entendida como complexo de fatos linguísticos), tramada com minúcia, de tal modo que a palavra por vezes vem a ser uma espécie de personagem. O conto “Famigerado”, de Rosa, e o poema “A Palavra Seda”, de Cabral, servem de exemplos modelares da experiência de se fazer literatura a partir de vocábulos.
Por seu rigor, contudo, a poesia de João Cabral é a que mais evidencia a logicidade gramatical. Sua coerência e apuro formal (a exemplo de “O Ovo de Galinha”, poema cubista) denotam árdua reflexão – o que é enfim característico de sua linearidade. Sua lucidez a conduz a uma atitude filosófica e resulta na sua face crítica. A simples leitura dos poemas cabralinos faz a sintaxe “transparente”, tornando-a legível, como um palimpsesto decifrado. A Língua torna-se essencial à meditação – pois se transformam em matéria do poema. Na poesia de João Cabral, certos elementos, como o canavial ou o rio, por sua evidente importância em ordenar a paisagem nordestina, são comparados a uma sintaxe ou a uma sentença, dispostas no cenário como se fossem palavras na frase e frases no discurso, com suas relações lógicas.
Preferindo a análise, em vez da evidência, em “O Fogo no Canavial” o poeta escreve:
A imagem mais viva do inferno.
Eis o fogo em todos os seus vícios:
eis a ópera, o ódio, o energúmeno,
a voz rouca da fera em cio.
O espetáculo da combustão é definido instantaneamente no primeiro verso e, igualmente, em quatro versos que não possuem um só verbo, numa listagem caótica de impressões, de imagens que não se relacionam entre si, independentes e significativas. Nos últimos versos da estrofe seguinte, escreve sobre o fogo que voa
em petardos que se disparam
sem pontaria, intransitivos.
A síntese dessa imagem revela a articulação entre a paisagem e a gramática na poesia de João Cabral. O estado de intransitividade supõe, por definição, a existência do verbo. Esse verbo, entendido como ação, é enfim o próprio fogo. Só que, verbo intransitivo, a sua ação passa a ser singular e – na imagem do poema – ríspida, definitiva. Pois a definição de verbo intransitivo é a de conter integralmente a ação, que não vai além dela, dispensando complementos. A crueza de tal imagem guarda muito do racionalismo in extremis praticado por Cabral, mas é quase nada se comparada ao trecho final de “As Facas Pernambucanas”:
Se a peixeira corta e conta,
o punhal do Pajeú, reto,
quase mais bala que faca,
fala em objeto direto.
Nesses versos, Cabral se refere ao objeto que mais perfura do que corta – e transmite a violência do punhal com verdadeiro requinte. Primeiramente, depois de defini-lo como reto, o poeta imagina uma inteligente ambiguidade ao classificá-lo como objeto direto, que denota certa “intenção” do objeto em perfurar, dando-lhe também uma função. Do mesmo modo, obviamente, indica o complemento de um verbo – do verbo perfurar – e ainda o ser para o qual se dirige a ação. Outra metáfora, ainda mais sutil, é aquela que aglutina três palavras de sonoridade semelhante, na seguinte fórmula: bala + faca = fala. Não se trata de mero artifício trocadilhesco, mas de uma significativa redução de dois elementos a um só conceito, o de Fala, estipulado por Saussure, e no qual Roland Barthes via a parte puramente individual da linguagem. O projeto de Cabral, ao que parece, é produzir uma gramática pessoal para individualizar cada vez mais a realidade do seu poema. Como mestre (ou aprendiz) de si mesmo, talvez esteja em sua poesia a melhor definição desse projeto:
a atenção destila
palavras maduras.
(“Psicologia da Composição”)
A poesia de João Cabral, já exaustivamente comentada em muitos aspectos, conhece atualmente alguns tópicos consensuais: por exemplo, o que Sebastião Uchoa Leite definiu como “eixos semânticos permanentes”, [2] ou seja, os elementos ou temas que em geral se encontram na sua poesia. Ou ainda a “poética contemporânea da construção”, “uma poética da denotação”, “espécie de ultranominalismo”, como percebido por João Alexandre Barbosa. [3] O longo estudo precursor de Othon Moacyr Garcia observa com argúcia os temas daquele poeta que havia pouco estreara (por exemplo, o da faca-lâmina e o do sangue-lama), e insiste na filiação evidente do poeta à poesia de Paul Valéry e de Mallarmé, além de ressaltar o aspecto gráfico e mesmo uma interseção com a linguagem matemática. [4]
Ainda estava muito cedo, contudo, para que se observasse qualquer indício de poesia erótica nos livros publicados por João Cabral até o ano de 1958. Por isso mesmo é que em “A Página Branca e o Deserto”, Garcia pôde escrever, resoluto, embora em nota ao seu ensaio, que “digna de assinalar é a ausência de temas eróticos na poesia de João Cabral.” [5] O tema do amor, ele assinala, parece ainda mais raro em sua poesia – porém, talvez em razão de um exagero, de um excesso de interpretação psicanalizante, observou um “tema fálico” representado sobretudo pelo par faca-lâmina.
Certamente Othon Moacyr Garcia não teve a oportunidade de Sebastião Uchoa Leite, que, ao escrever sobre o livro Quaderna (1960), salientou “a surpresa de uma diversificada poesia erótica”, com a novidade de que em muitos poemas surge a preferência pelo tratamento na segunda pessoa do singular, raríssima em sua poesia. A observação é ainda mais elucidativa quando se sabe que foi nesse livro que Cabral compôs seus primeiros poemas dirigidos a uma mulher, como aquele à bailadora andaluza, e talvez a uma outra, mais abstrata, em “Imitação da Água”.
2. A principal característica da poesia erótica de João Cabral de Melo Neto é a de estruturar-se em universos opostos – poesia erótica que se organiza de forma dual em masculino e feminino; universos opostos, porém nunca antagônicos. E se a sua poesia erótica não permite jamais a ambiguidade – ou seja, que os seus elementos não sejam nem femininos, nem masculinos -, permite ao menos surgimento de uma enfática subversão sexual, no qual o feminino se vê às vezes violentamente transformado em masculino, ou vice-versa. O erotismo em sua poesia é todo filiado a uma dimensão telúrica, e esta corresponde à tradição mais obcecante da poesia brasileira, o que não deixa de ser curioso em um poeta que tanto escapou a esta mesma tradição. Num trecho de “Generaciones y Semblanzas”, publicado em Serial (1961), recorda-se em muito a descrição erotizante do poema barroco “À Ilha da Maré”, de Manuel Botelho de Oliveira. No poema cabralino, lê-se:
(os tomates sensíveis
as alfaces barrocas,
couves meditabundas,
sentimentais cenouras)
Os versos anteriores servem de introdução para o que, em sua poesia, corresponderá à sexualização da terra. Nos universos opostos de sua poesia erótica, serão femininas a cidade de Sevilha, os mangues pernambucanos, a chuva, as colinas e as montanhas e ainda a Zona da Mata; e serão masculinos o Estado de Pernambuco, a caatinga, o Sertão, o mandacaru, o mangará. As qualidades masculinas de Pernambuco, por exemplo, são arroladas no poema “Duas Cidades” (no qual, ressalte-se, faz-se a oposição daquele Estado brasileiro ao espanhol d’Ors): assim, Pernambuco é “masculino”, “de ossos à mostra, duro”, “o mais distinto / de mulher ou prostituto”, “lúcido”, “medido” e, como informa o título de outro poema, “Mal Adubado”. Em “Na Baixa Andaluzia”, por sua vez, a região espanhola é toda feminina, terra “de noiva, / de entreperna”, que “nem cessa de parir nem a ninfomania”, “terra sem menopausa”, “e que de ser fêmea nenhum forno cura”, “a menos macha”. Nessa comparação, talvez se tenha captado alguns elementos que formam os universos opostos de sua poesia erótica. Mas nem sempre existe coincidência entre gênero e sexo; pelo contrário, Cabral revela-se extremamente cioso de reformar a natureza, como na fábula de Monteiro Lobato, e de lhe conferir um sexo que só corresponde aos limites de sua sensibilidade de poeta. A subversão sexual por vezes atinge uma dimensão psicológica, a exemplo do que ocorre com o tema da cana-de-açúcar. Em sua poesia, a cana-de-açúcar não encontrará qualquer identidade com sua forma fálica. A cana-de-açúcar tornou-se mulher, ao menos pelo que se lê nesses versos:
deixou nua a perna da cana,
despiu-a, mas sem deflorá-la.
(“O Fogo no Canavial”)
Esse deslocamento corresponde muitas vezes a uma imperiosa redefinição do elemento na paisagem sexual, ou na paisagem a que o poeta atribui vestígios corporais. Por isso mesmo é que no poema “O Engenho Moreno”, de A escola de facas (1980), o poeta observa que existe certa região
onde o Recife secreto
é a Recife, muda o sexo.
O mesmo processo de violenta subversão do gênero – o que implica, obviamente, na radical mudança de significado – está presente no poema “Uma Ouriça”, e estimulou o aparecimento de palavras como “macha” e “prostituto”, em outros poemas.
A questão do gênero gramatical e de seu inevitável relacionamento com a simbolização do real é matéria espinhosa para muitos linguistas, que se valem de variadas interpretações – históricas, psicológicas, retóricas, entre outras – para a justificação de uma categoria gramatical por vezes supérflua (pois, realmente, de que serve saber se é feminino ou masculino o animal que matou o seu treinador na frase “O leão matou o treinador”?). Os estudos precursores de Antoine Meillet sobre a categoria do gênero mostram que, em geral, a forma do feminino é uma derivação da forma do masculino. [6] Assim, ele observou que ocorre sempre uma hierarquização que estrutura não só as palavras, mas as coisas por elas nomeadas. Foi Roman Jakobson, mais tarde, quem perguntou decididamente pela função metafórica do gênero, e observou a importância das “atitudes mitológicas de uma comunidade lingüística”. [7] Na poesia de João Cabral, não parece haver, funcionalmente, hierarquização entre os pares homem-macho e mulher-fêmea; mas parece inegável que esses universos opostos existem consoante a ordem rigorosa que forma a paisagem tematizada em seus poemas. Neles, o gênero é completamente semantizado: passa a significar, unicamente, uma distinção sexual – mesmo quando associada a objetos, a exemplo de “faca”, ou à paisagem, a exemplo de “mangue”, entre tantos outros. Embora inexista a hierarquização dos objetos e da natureza, evidencia-se o processo de antropomorfização da paisagem, que contagia a realidade do mundo animado e inanimado (quase se escreve, em termos existencialistas, do em-si e do para-si). Trata-se de um processo ainda mais notável ao se perceber que, embora o poeta atribua ao feminino e ao masculino categorias já bastante tradicionais (respectivamente, docilidade e dureza), o que deve encolerizar as feministas, levadas a denunciar o sexismo da linguagem, não existe propriamente um termo dominador e outro dominado; muito pelo contrário, a poesia de João Cabral retrata uma sensível confluência de opostos, sem valorizar qualquer um dos “sexos”. Assim é que surge no poema “As Frutas de Pernambuco” a tese de que
Pernambuco, tão masculino,
que agrediu tudo, de menino,
é capaz das frutas mais fêmeas
e da femeeza mais sedenta.
A capacidade de criar o feminino a partir do masculino se inverte em outro poema, “Duas Bananas & a Bananeira”, do livro A educação pela pedra (1966):
Entre a caatinga tolhida e raquítica,
entre uma vegetação ruim, de orfanato:
no mais alto, o mandacaru se edifica
a torre gigante e de braço levantado;
Enfim, todo o poema anterior consistirá em especular sobre a natureza da “caatinga anã e irmã” e do mandacaru, símbolo de uma virilidade inusitada porque plantada e crescida em terra tão pobre.
Um outro exemplo interessante – mas, dessa vez, relacionado à transformação sexual de um elemento da paisagem nordestina – pode ser percebido no poema “A Escola das Facas”, em que João Cabral elabora uma surpreendente metamorfose do vento alísio quando este sobrevoa a Zona da Mata (que, note-se, é uma região feminina em seus poemas). O vento alísio, no entanto, por cursar
(…) as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.
E é justamente nesse instante que ocorre uma implícita modificação do “sexo”, numa imagem que atinge o movimento e a forma do vento e, de certa maneira, o enlace que se dá entre este e a terra:
Por isso, sobrevoada a Mata,
suas mãos, antes fêmeas, redondas,
ganham a fome e o dente da faca
com que sobrevoa outras zonas.
O procedimento de metamorfosear um elemento, alterando a sua natureza “sexual”, quando ele apenas muda de situação, lembra bastante uma eficiente distinção concebida por Gaston Bachelard a propósito do vocábulo “água” – água que, fazendo-se violenta, mudava de sexo (Cf. L’Eau et les rêves). Numa rara vez, a paisagem estranha de um país tanto incomodou o poeta que este se viu prestes a fazer uma intervenção nela; assumiu, talvez, ares moralistas no poema “Praia ao Norte de Dacar”, de Agrestes (1985), quando, atiçado pela conjunção de uma savana com o mar (que conviviam “cama e mesa, / suas vidas viúvas”), exortou a sua memória pernambucana a impedir de algum jeito
essa cópula eunuca,
esse coito lesbiano
entre a savana muda
e a outra, a de água mar,
savana tartamuda.
Note-se de que forma, espertamente, o poeta adiciona a palavra de gênero feminino “água” diante de “mar”, com o intuito de não permitir de forma alguma um enlace heterossexualizado e, por extensão, tradicional. Já em “Forte de Orange, Itamaracá”, existe uma forte conotação homossexual, dessa vez masculina, muito embora seja intenção do poema registrar a fusão que acontece, gradualmente, entre o ferro e o musgo, em que as duas naturezas masculinas são sugeridas apenas pelos gêneros, e se fundem temporalmente:
E um dia os canhões de ferro,
sua tesão vã, dedos duros,
se renderão ante o tempo
e seu discurso, ou decurso:
ele fará, com seu pingo
inestancável e surdo,
que se abracem, se penetrem
se possuam, ferro e musgo.
Numa comparação entre os dois poemas acima citados e os demais em que também se observou a poesia erótica de João Cabral, percebe-se que a homossexualidade corresponde a uma tendência à indistinção, ao igualamento; de certa forma, a continuidade da savana-água equivale à fusão do ferro- musgo. Por sua vez, a heterossexualidade corresponde à distinção, à desigualdade: não ocorre propriamente fusão alguma – como poderia ser exigido de dois “corpos” complementares -, mas sim a possibilidade mesma da vida. Pois ambas as imagens homossexuais estão filiadas ao tema da esterilidade, da homogeneidade anuladora (por isso, a menção à “savana calva”, às “vidas viúvas”, às “camas murchas”, entre outras, no poema “Praia ao Norte de Dacar”, e ainda à inutilidade do canhão desativado, em “Forte de Orange, Itamaracá”), enquanto os universos opostos – sempre heterossexuais – geram a vida mesmo em meio à natureza mais inóspita e à menor expectativa.
Não existe na poesia de João Cabral de Melo Neto o erotismo físico, de dois ou mais corpos humanos, nem mesmo comparação à relação concreta entre duas pessoas. Na verdade, o seu erotismo representa bem uma psicologia da composição: é um erotismo que estrutura realidades, que metaforiza corporalmente as realidades não-corporais. Ele é, muitas vezes, conotação do processo vital, mas nunca é o processo em si: trata-se de um erotismo alusivo, difuso, mas, ao mesmo tempo, totalizante – uma vez que ele ordena o mundo. Recordando-se da distinção estabelecida entre elementos opostos e elementos antagônicos, conclui-se que é a oposição entre macho e fêmea (e entre vários outros correlatos) o centro para o qual converge toda ideia de gênese, de início criador, de fiat lux em sua poesia. Centro em que palpita a própria vida, formado dessas forças opostas e geradoras, e às vezes belamente definido em versos que saúdam um recém-nascido, como estes de Morte e vida severina (1955):
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
O erotismo cabralino denota uma preferência pela contradição, porém uma contradição criativa. Talvez ainda se esteja simplesmente identificando uma característica do poeta que, brasileiro, mais agregou à sua poesia aqueles elementos que raramente pertenciam à poesia do Brasil.
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[1] Suplemento Cultura, O Estado de São Paulo, 19.08.1989.
[2] “Máquina sem Mistério: a Poesia de JCMN”, in Crítica clandestina (Rio de Janeiro: Taurus, 1986), p. 112.
[3] “Linguagem & Metalinguagem em João Cabral”, in A metáfora crítica (São Paulo: Perspectiva, 1974), p. 138, 139 e 147.
[4] “A Página Branca e o Deserto”, in Revista do Livro, n. 7 a 10. O estudo precursor de OMG merece uma edição em livro que o resgate da publicação seriada e dispersa.
[5] Op. cit., n. 7, p.66.
[6] Antoine Meillet, assim como L. Gray (Foundations of Language, 1939) e Otto Jespersen (The Philosophy of Grammar, 1929) estudou a questão do indoeuropeu. Um bom estudo sobre os conceitos de masculino e feminino é encontrado em J. Mattoso Câmara Jr., “Uma Categoria Nominal: O Gênero”, in Princípios de lingüística geral (Rio de Janeiro: Padrão, 1980), p. 130-139.
[7] “Aspectos Linguísticos da Tradução”, in Linguística e comunicação (São Paulo: Cultrix, s/d), p.70.