A próxima leitura efetua uma leitura próxima de seu objeto (em particular, o poético) sem, no entanto, cingir-se à microscopia analítica. A sensibilidade para com o detalhe, a argúcia/minúcia do olhar interpretativo convivem com indagações de largo espectro, num processo dialético que caracteriza a atividade crítica tal qual vem sendo superiormente exercida por Felipe Fortuna desde A escola da sedução (1991), e a partir daí ratificada em numerosos artigos e ensaios esparsos.
Difícil destacar o maior mérito de Fortuna: se o amplo conhecimento da matéria sobre a qual discorre (sem que o peso da erudição se transforme em obstáculo para o leitor), se a poderosa engrenagem argumentativa que sustenta seus juízos, se a qualidade literária de sua prosa, se o destemor com que enfrenta clichês, mitos e nichos bem assentados de nossa república das letras. Talvez o amálgama dessas virtudes seja o responsável pela singularidade e pela independência de Fortuna, que, também como poeta, desenvolve uma produção à margem dos grupos e contragrupos que se entredevoram na busca do poder literário.
A primeira das três partes do volume concentra os ensaios de mais largo fôlego. Se o primeiro deles parece conter, digamos, um investimento analítico que suplanta o próprio alvo da análise, nos demais há notável adequação entre o tom do discurso interpretativo e os objetos sobre os quais incide. A qualidade e os impasses da poesia de Sebastião Uchoa Leite encontram em Felipe um leitor exigente e atilado, mas nunca deselegante. Cassiano Ricardo e Joaquim Cardozo são reavaliados numa perspectiva que acentua os méritos desses dois poetas algo esquecidos no cânone brasileiro. Os ensaios sobre Cruz e Sousa – um dos pontos altos do livro – redimensionam as relações do poeta frente à questão da raça e aos mecanismos de afirmação social, via literatura, no Brasil de fins do século XIX, flagrando as insuficiências do pensamento do autor, mas relevando-lhe a dimensão estética.
Após um intermezzo dedicado à narrativa, com fecundas observações sobre a (des)caracterização do lugar-comum em Dalton Trevisan, e com um cotejo de temas similares e formas díspares em Mário de Andrade e Clarice Lispector, Felipe retorna à poesia na seção final de A próxima leitura, que reúne colaboração para a imprensa. O caráter mais sintético de tais artigos não lhes diminui a densidade. Em vez de acomodar-se na facilidade de uma anódina produção de paráfrases “para grande público”, é aqui, ao contrário, que a dicção de Fortuna se torna mais afiada e polêmica, expondo-se com desassombro contra “verdades” sedimentadas. Suas restrições (bem como seus endossos) são sempre fundamentadas, e eventuais flutuações de qualidade que detecta nos textos dos poetas ( a exemplo do que ocorre no ensaio dedicado a Frederico Barbosa) se respaldam invariavelmente em ampla citação das obras analisadas.
Dar a entender parece ser o lema de Fortuna. Um esforço de compreensão, e um gesto de generosa partilha desse esforço. Afinal, como na experiência vivenciada por Bishop e descrita no excelente estudo que fecha o volume, a poesia, como um país onde não se nasce, é sempre um corpo estranho. Assimilá-lo, sem domesticá-lo, incorporá-lo, sem neutralizá-lo, é dos maiores desafios críticos. Felipe sabe posicionar-se com firmeza, mas sem dogmatismo. Por mais fecundo, como é o caso, que seja o discurso analítico, o ensaísta sabe que a voz do outro começa a partir do ponto exato onde a sua se calou. Por isso sempre, e inesgotavelmente, todo texto demanda A próxima leitura.
Antonio Carlos Secchin