Entregue à própria sorte. O mundo gira. Entregue ao acaso dos ventos ideológicos, das explosões fratricidas e das misérias locais. O mundo está à solta. Não como balão ou papagaio, cabelo feminino ou pássaro de canto alvissareiro. “O planeta tem raiva.” Está à solta como cavalo liberto das rédeas ou goela de cão hidrófobo ou drone em missão de rapina. “Não há mais deuses secretos / seitas cifras tarôs. / Tudo ficou aberto”.
À mesa da poesia, Felipe Fortuna recebe o mundo aberto e faminto, no meio da carnificina humana e do desatino cósmico. “O mundo se vasculha me vasculha. / Não exagero.” Atacado, o hospedeiro contra-ataca. Felipe clica de repente e sucessivamente o mundo à solta, como se fosse a lente Panoscan que permite aos peritos da NYPD captar imagens em 360 graus das cenas de crime. “Tudo se abriu, / tudo ficou aceso e surgiu um palco / e súbito sumiram as torres gêmeas.” Felipe retoma a experiência dos anos 1920 oferecida em imagens por Dziga Vertov e a dos anos 1930 escrita em prosa por John dos Passos. Ele é a eye-camera sensível e cosmopolita em tempos em que − estamos no século 21 − o mundo anda de novo à solta.
O mundo à solta – a coleção de poemas − fotografa como quem vê tudo. Arquiva documentos. Comenta-os ao relento. Analisa-os fora da faixa de pedestre. O poeta fica onde está, desde Canudos, My Lai e Alcácer-Quibir. “Não Ultrapasse.” Diagnostica os mosaicos que caem na forma de Guernica. Entoa um mantra: “é necessário / reduzir os desastres naturais.” Nenhuma catástrofe é natural. As tragédias são tão fabricadas quanto a granada que leva pros ares guitarras narguilés panos joias sedas e o corpo inocente de Samir. O rapaz morre no souk “sem saber, em meio à guerra, / como e por que barganhar.” É preciso erradicar a pobreza. Combater a desertificação.
Por guardar na memória poética os processos em aberto do século 21, O mundo à solta pode ser objeto de queima de arquivo, como a testemunha que viu tudo. Aliás, o racista, que é vizinho, “entende como se fabrica / um novo artefato explosivo. / Amanhã morrerá um homem / muito diferente do intolerante.” Felipe entoa outro mantra: “Tanto desastre também exige / reduzir os orçamentos militares, fazê-los / tão pequenos quanto uma continência”.
Não é só o mundo que anda à solta. Como alegoria em mapa medieval, o fora da terra − a rosa dos ventos − também está à solta. Dos ares somos aspergidos de “herbicídio fungicídio biocídio”. Os pilotos do avião B-29 sobrevoam a cidade “(onde plantaram, cada um, / seus maiores cemitérios).” Abre-se a paisagem: “gás cianídrico tabun napalm sarin”. Também o debaixo da terra está à solta e mata: “foi decidido onde enterrar/ dejetos radioativos.”
Se é que ainda há lugar para os Senhores da Paz, quando é que chegarão? Talvez nunca, já que o mundo gira e “Todas as raças se exportam. / Todos os credos comportam / ofendidos e humilhados.” No entanto, “Todos sabem sorrir.” Nós também, “nesse país pacato, tão / disciplinado, há séculos reformado”. E ainda o drone, que sorri em silêncio no poema, depois de desligados os motores.
Felipe suplementa esse mundo “sobrecarregado” com o cotidiano da Londres ordeira, onde invoca a boa poesia. O mundo à solta está chocho. O dia-a-dia está esvaziado de páthos; em ambiente jornalístico hostil, os valores da boa poesia foram desocupados pelas intenções políticas da arte. Nas suas “Idas & voltas a Londres”, o espanto do “diplomata alerta” abre as portas como um vagão. Nele sobem fantasmas de soslaio, almirantes defuntos, vias férreas e telescópios. O espanto se constrói com perguntas. Nenhuma resposta. Só o clamor pelas flores distantes: “todo o jardim parece meu poema.” Este deve “não ser lido por quem antipatiza.” No entanto, se lido, se transformará não em explosão ou em suspiro, “mas / num tuíte”. Desligados os motores do poema, o poeta como o drone sorri.
Constituído e destituído de páthos, O mundo à solta leva o leitor a sobrenadar próximo à rosa do povo, enquanto veste e protege o poeta com o escafandro da vida diplomática. Apaixonado e ambivalente, O mundo à solta coloca Felipe Fortuna entre os melhores poetas da atual geração de indignados. As “astúcias da mimese”, para retomar José Guilherme Merquior, fazem-lhe bem e o retiram do beco-sem-saída de A mesma coisa, seu livro anterior. Pelas fendas abertas pelo depoimento humano, O mundo à solta respira o cheiro sulfúrico do milênio.
Silviano Santiago