O intervalo comercial representa, na televisão, a descontinuidade da programação, o momento em que uma mensagem é suspensa para que sejam exibidos os patrocinadores. A vinheta, acústica ou visual, é um recurso para atenuar a interferência na programação, com curiosos efeitos no comportamento do telespectador.
Uma velha ideia, bastante antipática ao hábito de assistir à televisão, faz suspeitar da fidelidade do telespectador: durante os comerciais, ele ficaria com os olhos grudados na tela; e iria à cozinha ou ao banheiro durante os programas, talvez cheio de tédio. A ideia muito nos ensina sobre a qualidade técnica e artística dos anúncios – que recebem grandes investimentos e precisam, em até trinta segundos, convencer alguém a comprar. Ao mesmo tempo, alude à possibilidade de se inserir, em meio aos programas habituais (penso, sobretudo, nos humorísticos, que se repetem ad nauseam) mensagens de extrema sofisticação que, muitas vezes, se tornam mais atraentes do que a monotonia e a previsibilidade dos capítulos de uma novela e dos documentários. Ao final de uma programação ou de um período passado frente à tela, não surpreenderia se o telespectador não se lembrasse das principais notícias internacionais, mas sim de um anúncio engraçadíssimo de um detergente ou de uma belíssima morena que, passeando pelo deserto ao som divinal de algum compositor clássico, o convencesse a chupar um picolé.
Os comerciais representam a interferência mais comum à programação. A outra interferência é a da vinheta. É preciso, porém, estabelecer as evidentes diferenças entre as duas formas de interferência: ao longo da programação, o comercial indica a descontinuidade, a interrupção de um filme. A vinheta, que pode estar presente no início do corte da programação e no fim de todos os comerciais, indica a continuidade. Evidencia uma identificação da estação ligada ao vincular um clássico dos anos 40 a uma emissora. A vinheta é particular e intransferível. O comercial, por sua vez, é cosmopolita: os produtos anunciados se destinam a um público que poderia estar tanto num canal quanto noutro. A vinheta transforma a programação em propriedade: pela simples inserção de um sinal sonoro, de um logotipo, de um compasso musical ou de uma frase, faz convergir para a estação transmissora a autoria da seleção de um filme, a existência de uma decisão e de um poder que regulamenta o tempo de cada programa.
Propriedade e autoria são, em síntese, o que uma vinheta comunica. Propriedade quando, em meio a um filme, surge o logotipo da emissora na parte inferior ou superior da tela, “sujando” um pouco a imagem, mas evitando a cópia clandestina e a eventual esperteza de um concorrente que desejasse reprisar o filme em sua emissora. E autoria no caso das produções locais, numa “assinatura” empresarial da produção. Mas não se pode esquecer, ainda, o aspecto ornamental que o seu uso confere a toda programação. As antigas revistas dedicadas às senhoras de sociedade, no início do século, e as molduras que ornavam em geral um soneto nas revistas literárias eram vinhetas que chamavam a atenção do leitor para o espaço nobre ocupado por um inefável poeta. Conseguia-se isolar a criação artística altaneira e imperiosa de qualquer outra discussão mundana por meio desses enfeites que circundavam a glória do escritor.
Mesmo na etapa televisiva a vinheta não perdeu essa característica: se em meio a um filme surge o logotipo da emissora, sua aparição é “sinônimo de qualidade”. A elevação do padrão gráfico e sonoro das vinhetas atingiu atualmente tamanha sofisticação que penso já ser possível referir-se a uma arte intersticial, manifestação que ocorre nos espaços intermediários, “entre uma coisa e outra”, cada vez mais apurada e significativa. No Brasil, Hans Donner é o profissional mais conhecido como designer de vinhetas televisivas: seus recursos são os da computação gráfica, que lhe permitem efeitos de tridimensionalidade e de perspectivas inovadoras e incomuns. Alguns meses de trabalho são necessários para que se possa obter um resultado de, no máximo, cinco segundos. Tanta complexidade está produzindo um dos fenômenos mais interessantes da mídia eletrônica.
Paradoxalmente, a vinheta é uma economia, no mesmo sentido que uma sigla é uma economia: quantas pessoas sabem o que representa ONU sem saber que ONU é, por extenso, a Organização das Nações Unidas? A vinheta, da mesma forma, produz uma informação concentrada, uma totalidade reduzida, porém jamais redutora, dos valores intrínsecos da emissora que representa. Apesar de reduzida, e de ocupar um pequeno espaço diário, a vinheta não é marginal e muito menos descartável, produto de importância secundária. Pelo contrário, o aperfeiçoamento cada vez maior de sua função, que permite investimentos razoáveis, indica o seu valor num meio balizado sobretudo pela audiência. É capaz de produzir até mesmo o fenômeno da audiência inercial, em que o telespectador mantém o aparelho ligado na emissora por ter certeza, em razão da vinheta, de que aquela é a sua preferida. Nesse sentido, pode-se aproximar a vinheta, em muitos aspectos, de uma forma de comunicação não-verbal – especialmente quando a informação se limita a um bip eletrônico, a uma chamada em que os ruídos, associados à imagem e repetidos ao longo de um grande período, transformaram-se em mensagem. No caso em questão, a vinheta televisiva é uma informação digital, incluída na mesma categoria dos sinais de trânsito e das placas de advertência, entre outras.
Existe, por fim, uma complexa característica da vinheta, que se relaciona à sua recepção pelo telespectador: ela é o sinal de um condicionamento comportamental. Quando assiste à vinheta que lhe indica o corte abrupto do programa, aquele telespectador talvez se levante. Ao perceber que, mais uma vez, ela surge, volta à poltrona. Como um cão fiel, ele sabe exatamente quando o seu dono o chama para se divertir.
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** Folha de São Paulo, suplemento Mais!, 18.10.1992, com o título “A Arte do Interstício”