Correio Braziliense
Segunda-feira, 22 de fevereiro de 1992
UM POETA E SEUS MODOS DE RIR E DE MORRER
Fernando Marques
A mais caprichosa e difícil das artes é a poesia. “Por quê?”, perguntam os que se dedicam a fazer perguntas tolas. Porque a poesia é a arte das palavras e as palavras são matéria de todo dia, estão expostas à pressão e às impurezas cotidianas, banalizadas pelo uso indiscriminado que se faz delas. Produzir arte com material tão precário não é fácil.
Alguns não gostam da poesia – há quem não aprecie o samba. Em geral, são os menos versados, sem trocadilho, na matéria: conhecem apenas maus poetas e julgam a poesia pelo que (des)conhecem dela. Impossível, no entanto, julgar uma arte pelo que produzem artistas que não chegam a dominá-la, meros praticantes que sequer devem ser chamados de artistas.
Há um ótimo poeta na praça, aliás, precisamente, nesta praça, vindo do Rio. “Quem é?”, indagam os curiosos, compreensivelmente excitados. É Felipe Fortuna. Tremei, Drummond. Fortuna está em seu segundo livro de poemas. O primeiro chama-se Ou vice-versa e traz a data de 1986. O segundo, recente, leva o nome de Atrito. O autor lançou, ainda em 1991, um volume de artigos críticos, A escola da sedução.
Morte suave – Jornalista, Felipe Fortuna faz parte de uma geração que, há cerca de sete anos, ganhava espaço nas páginas do caderno B do Jornal do Brasil, hoje debilitado em suas qualidades de líder da imprensa de cultura brasileira. Fortuna tornou-se diplomata, cultiva o jornalismo, agora, de maneira bissexta e continua a escrever seus poemas e ensaios. Tem juízo.
Para fazer ideia de sua poesia, leiam-se os quatro textos reunidos sob o título “Modos de Morrer”, nos quais o poeta explora o tema da morte imaginando formas alternativas de passar desta para melhor. Sóbrio, arma a série “Modos de Morrer” com poemas de corte idêntico: cada texto tem três estrofes de quatro versos cada um. Os versos não pretendem ser severamente medidos, mas oscilam de cinco a doze sílabas. E o poeta, trabalhando com imagens inusitadas, fere o leitor ao tocar sem facilidades o tema da morte.
Ataque cardíaco, atropelamento, câncer ou morte suave (embora a asfixia a torne menos doce): as alternativas eleitas são quatro. O textos número dois diz:
Descobriu que o corpo, do
mesmo modo que os rios
e os encanamentos, possui
tráfegos, fluxos intensos:
que suas águas carregam partes
do corpo, e um pouco
apodrece pelo caminho.
No seu caso, o sangue foi veneno:
o alimentou de morte todo o tempo.
A mão não se ergue, e é pequena
toda a força. O câncer vai expulsá-lo
por dentro, mordendo-o.
Em sua independência, os versos devem algo a João Cabral. A influência ou, pelo menos, o diálogo de Cabral e Fortuna, no caso de “Modos de Morrer”, se anuncia na crueza das imagens, que procuram base física para realizar-se (“O câncer vai expulsá-lo / por dentro, mordendo-o”). Somam-se, para o efeito final, aliterações e assonâncias (repetição de consoantes ou vogais) como na coincidência de sons vocálicos a ligar “veneno”, “tempo”, “mordendo-o”.
Musa mignon – Fortuna desenvolve ainda poemas em versos livres, assim como trabalha poemas de metro regular, deliberadamente previsível. Neste último caso, está um dos dez textos que compõem os “Poemas para a Aula de Ginástica”.
Aqui, o metro funciona como indutor do riso ou do sorriso, ao lado de palavras de origem latina, inglesa ou francesa, todas de uso corrente por falantes do português – baby doll, ok, sine qua non, déjà vu. Trata-se de um poema bem-humorado que explora o inusitado dos vocábulos vindos de toda parte ou, por outra, o inusitado de amarrá-los uns aos outros num só texto (há o jogo adicional de grafia versus pronúncia).
As três últimas estrofes do texto número nove da série “Poemas para a Aula de Ginástica”:
Por isso, Musa, me ame. E nunca me confunda
aos Adônis que passam por ti de headphones,
que suam sob o blaser, que contraem a bunda,
estátuas de crepon, carbono e silicone.
Minha boneca baby doll, meu champignon:
eu sou quem ama à beça. Serei seu barman,
seu homem santo, macho e batman, se néon.
No réveillon, serei sine qua non. Amém.
Tudo o que é seu, eu quero ganhar em replay,
Como ganhei de Vênus a camisa, e o spray
de uma mulher-grafito que pintei. Sim: hei
de ser viril e appeal como Você. OK?
Solene em “Modos de Morrer” ou sorridente no texto dedicado à “musa mignon”, Fortuna domina seu ofício. Sua presença deve ser benquista pelos que gostam de samba, poesia, vinho e livros inteligentes. O autor comete deslizes aqui ou ali, como no texto que encerra os “Poemas para a Aula de Ginástica”: “Ao vê-la, tão lúcida, / entendo por que não faz ginástica no escuro.”
Fortuna pode ainda tangenciar perigosamente o piegas ao recorrer, como fazem tão frequentemente os poetas menores, a palavra de sentido amplo ou vago demais como “vida” e “morte”, com as quais todo escriba que consiga caminhar e mascar chiclete ao mesmo tempo (sem cair) precisa tomar todos os cuidados.