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Artigo de Wilson Martins

O GLOBO
Caderno Prosa & Verso
Sábado, 8 de fevereiro de 2003
CRÍTICA E ENSAIO
O trabalho exegético daquele que escreve sobre a literatura feita
Wilson Martins

A crítica de livros tem compromisso com a atualidade, distinguindo-se do ensaio literário, definido, antes de mais nada, pela intemporalidade, opondo propósitos analíticos às funções judicativas da primeira. Sendo transitória, a crítica aspira à permanência: seu ideal é antes antecipar-se ao julgamento de posteridade, dizia Álvaro Lins. Nisso está sua suprema justificação. De seu lado, o ensaísta é, virtualmente, entre os contemporâneos, o representante do futuro: não escreve sobre a literatura que se faz, mas sobre a literatura feita. Seu trabalho é, por consequência, exegético, exerce-se sobre obras e autores consagrados, não sobre os que ainda esperam consagração, muito dos quais, bem entendido jamais chegarão a conquista-la.

Não basta dizer que um livro é bom ou mau, como queria Victor Hugo: é preciso dizer por quê. O ensaísta, por definição, só se interessa pelos que o colégio eleitoral da crítica certificou como bons. É fácil perceber essas diferenças, de perspectiva na leitura conjugada dos ensaios de Felipe Fortuna (A próxima leitura: ensaios de crítica literária. Rio: Francisco Alves, 2002), e dos trabalhos de crítica corrente aqui evocados não em termos de qualidade ou importância, mas apenas no que se refere à sua natureza (Wilson Martins, Pontos de vista, 14º vol. São Paulo: T. A. Queiroz, 2002).

Trata-se, neste último caso, de livros publicados no período 1995/1997, isto é, autores como Ferreira Gullar, Gilberto Freyre, Jorge de Sena, Dalton Trevisan, Roberto Campos, Luiz Antônio de Assis Brasil, Josué Montello, Moacyr Scliar, Rachel de Queiroz e outros muitos, vistos não por sua posição absoluta, mas por sua situação relativa num quadro de valores. Os julgamentos que motivaram, malgrado o tom afirmativo do exercício crítico, são propostas para reflexão e debate, mais do que verdades taxativas e indiscutíveis. O próprio título da coletânea é significativo, tal como foi explicitado na introdução geral: “Sempre entendi a crítica como um diálogo, ou, antes, um ‘triálogo’, no qual se ouvem as vozes do Autor, com a obra, do Crítico, com a análise, e do Leitor, com o julgamento final, instituído a partir das perspectivas abertas pelos dois primeiros”.

Contudo, o que estabelece as fundações para o subsequente ensaio é a “opinião crítica” consensual que acaba por se consolidar a respeito de autores e obras — não a de qualquer crítico individualmente considerado, por mais prestigioso que seja, mas pelo conjunto ponderado e contraditório das diversas reações que provocaram: “o autor é o veículo da ideia criadora, o leitor é o mundo coletivo em que o texto vai atuar (…) o ‘triálogo’ se resolve, afinal, num colóquio, num ágape, mais socrático, isto é, crítico e irônico, do que platoniano, isto é, doutrinário e docente”.

Está visto que Felipe Fortuna, ao escrever sobre Joaquim Cardozo ou Cruz e Sousa, sobre Cassiano Ricardo ou Carlos Drummond de Andrade, sobre Clarice Lispector ou Augusto dos Anjos, dá por entendida sua qualidade indiscutível, sobre cujas obras já não cabe perguntar se são boas ou más: sabe-se que ocupam um lugar importante no quadro geral da literatura. Em contrapartida, há casos de grandes poetas, como Joaquim Cardozo, por exemplo, que, no consenso não-escrito da opinião literária, ainda é visto como menor e marginal — periodicamente recuperado em ensaios consagradores, como o de Felipe Fortuna neste volume.

Basta lembrar-lhe a influência determinante em poetas cobertos de glória, como, por exemplo, João Cabral de Meio Neto, que lhe deve “diversos processos e princípios conceituais (…). O autor de Signo estrelado (1960) estaria bem conformado à etiqueta de poeta de referência: suas invenções, teorizações, adequações e ideias originais, nem todas elas, presente-se, plenamente desenvolvidas ao longo de uma obra rigorosa e concentrada, converteram-se em marcos cruciais da poesia cabralina, juntamente com o construtivismo, entre outros”. Sua obra inclui muito dos nossos poemas essenciais, cabendo destacar, em plano próprio, a “Visão do Último Trem Subindo ao Céu”, objeto de uma análise magistral: “O mais longo poema de Joaquim Cardozo é seguramente um dos pontos altos da poesia brasileira de natureza filosófica e científica. Nele, o poeta se apresenta no seu momento mais ambicioso, como que contradizendo a aparente simplicidade de seus poemas de caráter regional e popular, e produz sequências de versos obscuros, alusões literárias e extraliterárias, segundo um processo interdisciplinar” — tudo submetido por Felipe Fortuna à leitura ensaística que é, ela própria, um modelo do gênero.

À visão humanística de Joaquim Cardozo e à espontaneidade dos seus poemas líricos é elucidativo contrapor o espírito polêmico e doutrinário de Augusto de Campos, estudado em outro capítulo, a propósito dos ensaios reunidos em À margem da margem (1989). Na observação de Felipe Fortuna, é inegável que o seu interesse crítico, “ao revelar e estudar escritores muitas vezes obscuros, quase sempre fascinantes, é o de criar uma nova tradição, para nela inserir o movimento brasileiro surgido nos anos cinquenta”. De fato, a obsessão de buscar legitimidade em antepassados ilustres, tardiamente descobertos e de poucas afinidades recíprocas (a exemplo de Mallarmé e Pound, além do legendário Arnaut Daniel) levou muitas vezes os concretistas a superleituras imaginosas, e até a desleituras, como no caso exemplar da palavra noigandres (v. W.M., A crítica literária no Brasil, II, p. 135 e s.).

De Cruz e Sousa a Décio Pignatari, de Clarice Lispector a Cassiano Ricardo, além de alguns jovens poetas ainda em estado embrionário, são estimulantes os ensaios de Felipe Fortuna, espírito aberto para a modernidade, sem ignorar a intemporalidade da tradição estabelecida, ao lado da “tradição do novo”, que nem sempre se afirma como tradição ou como nova. Fator catalítico em tudo isso é o “valor” Brasil, figura de espírito que escapa necessariamente ao observador estrangeiro, mesmo sensível, inteligente e cheio de simpatia como Elizabeth Bishop, comentada por Felipe Fortuna justamente a propósito de sua residência no país.

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