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Artigo inédito de Clarisse Fukelman

A DOR DO MESMO

Clarisse Fukelman

Eu sou” coincide com aquilo que eu digo que sou? No vice-versa, o vice se define como avesso do versa? Se assim é, por que amor, lido ao contrário, difere de Roma? Essa artimanha ou armadilha organiza o poema de Felipe Fortuna “A Mesma Coisa”, que abre o livro de mesmo nome. O tema, que persegue o poeta, volta mais ardiloso – vale dizer, depurado – podendo levar incautos a se fixarem na ideia do duplo, sem captar a ironia e a complexidade do que propõe através das referências sobre máscaras sociais e literárias. Fortuna discute, lado a lado, a voz poética autoral; o estar no mundo; e a condição humana pós-moderna, líquida e performática. O poeta lança no começo do poema o tema da (não)mudança, para escavá-lo aos poucos.

Eu me repito

mesmo

quando não copio

A equação entre o que se é, ou não, foge à aritmética da soma e supera qualquer maniqueísmo, ao se agregar o dramático Tempo. Fomos educados para acreditar que o sujeito está sempre em mutação. Assim, um mesmo texto revisitado nunca será o mesmo texto, como sinalizariam os pré-socráticos na linha de Heráclito, tornada lugar comum: “Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”. Mas a ideia da permanente e inexorável mudança cai por terra quando confrontada ao tempo midiático e globalizado, com compulsão à repetição, à tal mesmice. Para um poeta, o dilema se amplia e muda de teor, pois de um artista se espera um novo dizer, e este novo dizer se formula através de um emaranhado de citações. O arquivo pessoal invade a fala – no caso, estão entre outros Rômulo e Remo, Esaú e Jacó, Gullar, Kilkerry, Pound, Gertrude Stein – “como uma rosa uma rosa (uma rosa)” – impelindo-o a buscar na imagem do rosto o próprio rosto, o que em alguns momentos assume um remoto tom trágico, com evocações de Anaximandro.

Onde o rosto atrás do espelho estilhaçado? (p. 9)

Frente a ela sempre me espelha

e com diversos cristais tudo ilumina

e estilhaça. (p.17)

A busca de realização do eu ou da assunção de uma identidade afirmativa é apresentada no poema de forma gradativa, por reiterações e modulações. Ao recolocar insistentemente a falta de originalidade e encadear um volume considerável de constatações sobre fingimentos e cópias, ele pergunta sobre onde e como ancorar uma pessoalidade, pois não há garantias na tradição, no passado, no Deus, e muito menos no automatismo que dissimula identidades, eventos, criaturas.

O argumento do poema, portanto, está longe de ser simples. No jogo de opostos nota-se mais do que um pensamento dividido entre igual e diferente, novo e antigo. Se é visível a paralisia que acomete esse sujeito afogado em dúvidas irredutíveis a uma resposta, é certo também que ele não para de indagar. Não só: o tema da repetição vai-se abrindo em camadas, diversas frentes de reflexão – o fazer poético, a condição humana do ponto de vista existencial e social (“mesmo nascer às vezes se proclama / reprodução. E morrer imita a vida / de modo tão brusco que nunca mais / será possível modo mais original.” p.13), as técnicas de invenção.

Se, em termos de ritmo, o poema flui como um rio, do ponto de vista imagético a situação é outra: ele nos confronta com tropeços e fantasmas que rondam a linha fluvial e apresenta o engano em outras formas (aparentemente) nítidas. O ciclo esbarra no curto-circuito, colocando sob suspeita o mito do eterno retorno, sagrado ou profano (Eliade).

Os que passaram

se repetem e pedem

mais vida. Os autorretratos

duvidam ser originais

ou cópias tiradas

a carbono e formicida.

Cultuam-se mesmo

quando a missa termina. (p.25)

A crença no ato criador, ou na aposta do ineditismo através do processo de representação, esbarra em todos os mapas já escritos, a partir dos quais coisas apenas reduplicariam coisas (o outro rio que há neste), solapando a ideia de um tempo transformador. Daí, neste poema (com referências ao recurso ao trompe-l’oeil, por exemplo) serem invocadas ironicamente as regras aristotélicas.

Quando o remoto ou a tradição aprisionam-se em modelo, molde, a vida equivale a: morte, ventriloquismo, manequim, lassidão, clichê. O espaço deixa de ser construção, pela perda de contornos – precipício, inundação, rua sem saída, porta se fecha; reverberam sem fim -, ou pelo pastiche (fac-símile, dublagem, eco). O duplo se permuta pelo intransitável e pelo interminável, restando ao eu lírico se projetar em fragmentos ou se tornar palhaço de si próprio. Fica a questão: por que então fazer poesia, “Contra a Poesia” ( título do terceiro e último poema do livro)?

Walter Benjamin em seu ensaio “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica” discute os destinos da arte na era industrial, tendo na fotografia e na ideia de cópia uma possibilidade não de fechamento, mas de abertura para novas (e democráticas) possibilidades para a arte. Creio que não por acaso, embora com toque de ironia, o autor refira-se com frequência à mão, numa reminiscência do artefato manual, da impressão digital, e a partir dela a voz, o corpo e sua palpitação: “a mão que estende / é uma só, igual a todas”; “e ninguém dá a mão / amiga no final”; “sem uma mão para socorrê-lo”. O corpo despedaçado, que reaparece em “O Suicida”, segundo poema do livro, uma homenagem a tantos poetas perseguidos e mortos pelo gás ou pelo tiro, resiste na palavra, da mesma forma que a poesia dos que se forma não é palavra engessada: é capaz, sim, de provocar Felipe Fortuna, poeta no século 21, a escrever um belo e provocativo livro e, na condição imaginária de morto, (nos) fazer falar, à feição de Drummond:

Abre-se uma flor e nada há:

a origem do mundo não foi vista

e pela via negativa

o poeta se inclina sem medida.

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