Águas tempestuosas, águas balsâmicas, água doce, água salgada: o que é isso, afinal? Na poesia de Olga Savary, a água mole, assim como a pedra dura do diamante, é multifacetada. É também vital, e quase sempre vinculada aos jogos de amor. Fundamento, origem e gênese, a água é uma totalidade, uma evidência da unidade do mundo. Já há algum tempo, em Espelho provisório (1970), antes, portanto, de reunir a quase vintena de poemas sob a marca sutil da linha-d’água, Olga Savary havia definido os polos de sua tensão:
Ah, derramar-me líquida sobre o mar
– ser onda indefinidamente –
(“Tranquilidade na Tarde”)
Isso porque Olga Savary foi seduzida por aquilo a que os gramáticos dedicam a mais depurada repulsa: a confusão entre gênero e sexo. Pois, como eles preferem, a divisão entre masculino e feminino prende-se a uma classificação que atinge também as coisas inanimadas, e não à existência do macho e da fêmea. Assim pensa Cassirer, ao deduzir que a influência do sexo “representa apenas uma corrente particular na linguística e não um princípio universal.” [2] As línguas românicas, contudo, sempre estiveram afeitas a essa contaminação, suscitando as mais diversas análises, dos primeiros freudianos até Leo Spitzer – ao estudar a “feminização do neutro” como resultado, ao mesmo tempo, da mulher como força criadora e como objeto de posse. Obviamente, o imaginário da língua suplantou com vigor a gramática, fazendo do gênero um símbolo do sexo. Um tradutor brasileiro de Mallarmé, ao deparar uma imagem de conúbio amoroso em que la mer era o elemento-mulher, verteu-a sabiamente por as águas – mantendo a metáfora sexual. [3] Essa é a mesma fronteira delineada por Olga Savary – salvo o detalhe, essencial, de que o mar é de outro sexo, como escreveu em Magma (1982):
Mar é o nome do meu macho.
Pois, agitada pelos movimentos, e tornando ainda mais complexas as imagens, a água é a substância e o substantivo, enquanto o mar agita-se como se possuísse a força de um verbo, infinito e infinitivo. Mulher e homem: as águas invadem sob a forma de mar. Mar é invasão, e de tal modo profunda invasão que é capaz de transformar, como em Altaonda (l979), sua enraizada e telúrica natureza:
Entro na água e logo
a terra torna-se uma memória antiga.
(“Mutante”)
Existe uma intenção cosmopolita na poesia de Olga Savary, e a água a exprime por completo. Do fundo de sua serenidade, de sua meditação concentrada em poemas de poucos versos, emerge um projeto assombroso: dizer tudo. Com Tales de Mileto, essa mesma necessidade de sondar a natureza da matéria fez surgir o primeiro veio da filosofia. Segundo o pré-socrático, a água é o princípio da natureza úmida, presente no alimento e na terra que detona a semente. Começou com ele, conforme anotou Hegel, não apenas a ideia de que a água era o absoluto, mas de que, enfim, o um é a essência. Ao abandonar a alegoria tão comum ao pensamento anterior (por exemplo, o dos órficos), declarando “tudo é um, tudo é água”, ele reduziu a natureza humana à sua vastidão.
Esse princípio de vida é o mesmo na poesia de Olga Savary, que o recupera como se procurasse escutar toda a memória do mar na arquitetura de um búzio. A sua intenção, pois, é resgatar: a) na dimensão da água, o fundamento de uma unidade cósmica; b) na intitulação de vários de seus poemas, em que prefere corresponder-se com o Tupi, a língua original da Ilha de Vera Cruz, da Terra de Santa Cruz, do Brasil. A língua indígena é o reduto dessa memória; e c) enfim, quanto à matéria água, a grande porção que constitui, ao mesmo tempo, duas terças partes do corpo humano e três quartas partes do planeta Terra.
Dificilmente outra poesia poderia ser, pelo menos quanto ao seu tema, tão universal, tão abrangente e, até, solidária. Pois de que valeriam essas águas se nelas não rolassem as espumas que, da forma verbal grega (aphréin) originaram o nome de Afrodite? Ou se nelas também não houvesse esperma, a correr em rios, ou se tudo não estivesse traduzido no amor – núcleo abstrato do contato físico com a água?
Nesse Linha-d’água, Olga Savary redescobre a sua fonte primordial, e escreve sobre as transparências, sobre um corpo impresso no outro corpo, como quem insinua os vestígios dos amantes nos lençóis desarrumados: sinais de mutações que quase não deixam sinais, apenas vagas indicações. Armada de “dual sensualidade”, a água é uma evidência com a qual ela se defronta (água que ataca, embebe, cauteriza). Mergulhada na água, a poesia de Olga Savary faz parte de um mistério que reside na imensidão, jamais nos detalhes secretos: para ela, o mistério só existe quando já atingiu a dimensão infinita. Num desses poemas, o verso
me entrego, desaguada, sem medir margens
alude ao encontro e ao confronto: simultaneamente, ela é água e à água se confunde – com desmedida, com exagero torrencial. Água que a encaminha para o infinito, para a perdição; para a vastidão indomável:
água, bicho sem pelo
onde poder agarrar.
(“Catêretê”)
Olga Savary também escreve de águas passadas, ou seja, de tudo o que não se dissolveu. A associação do mar com o macho é de novo traduzida num magnífico verso, de angustiada certeza, todo monossilábico:
Que és o mar, meu mar, eu sei.
(“Uquiririnto”)
Na sua entrega, em que perde e ganha identidade, ela envelhece a terra; e, exilando-se, emigra para a sua outra natureza erótica:
Que eu toda me torne desterro.
(“Liberdade Condicional”)
Acostumada à concisão, sua poesia tende, com formas breves, com metros curtos, à permanência – qualidade, aliás, que lhe permitiu dominar a estrutura do haicai, talvez avessa às peculiaridades do idioma. Ao estrear numa década violenta da história política do País, Olga Savary atravessou-a com a delicadeza da linha-d’água no papel, sem se permitir a poesia engajada: ela é, de fato, poeta dos elementos, das formas naturais, das pequenas elegias. Que sua poesia, passada a tormenta, ainda seja apreciada, é sinal de que algo (ou muito) escapou à sua absurda serenidade: ela não possui, é certo, a vocação histórica, quase visceral, do Ferreira Gullar de Poema Sujo (1975), o mesmo que definiu a poesia de Olga Savary com um verso dela: “a cautela de veludo”. [4] Olga Savary também não fez os exercícios políticos que fizeram Affonso Romano de Sant’Anna e Armando Freitas Filho. E muito menos o fracasso poético da poesia marginal. Ela, nesse sentido, tenta evitar a definição de sua época: quando escreveu sua poesia, ninguém sabe. Ao contrário de Drummond, cuja dicção tantas vezes ecoa em seus versos, ela não se interessa pelo “tempo presente”: prefere o vasto mar ao vasto mundo, pois este último é por demais povoado. Aquela suposta permanência, por isso mesmo, foi estranhamente conquistada por sua indefinição. Mas é poesia definida porque, no grande mar a que se entrega, suas palavras se encontram naquele pequeno ponto em que reina, solitária, a ardência da água-viva.
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[1] Prefácio para Olga Savary, Linha-d’água (São Paulo: Massao Ohno, l987).
[2] Cf. The philosophy of symbolic forms (New Haven, 1955), p.295-302. A propósito da questão dos gêneros, consulte-se a nota 6 do ensaio “A Paisagem Corporal”.
[3] Cf. Haroldo de Campos, “Preliminares a Uma Tradução do Coup de Dés de Stéphane Mallarmé”, in Mallarmé (São Paulo: Perspectiva, 1980, 2a edição), p. 131.
[4] “Prefácio”, in Espelho provisório (Rio de Janeiro: José Olympio, 1970), p.9.