ESTADO DE MINAS
Domingo, 21 de agosto de 2016
LITERATURA
Buscador de poetas e poemas
Depois de traduzir Briggflatts, com versos do modernista britânico Basil Bunting, Felipe Fortuna prepara novo livro de poesia visual
Nahima Maciel
Felipe Fortuna estava em busca de um grande poema moderno ainda desconhecido no Brasil, algo nunca antes traduzido. Chegou a “Briggflatts”, do poeta britânico Basil Bunting, inédito no rol de modernos de língua inglesa traduzidos por aqui. Munido de grande disposição para pesquisar, Fortuna decidiu trazer para o português versos considerados os mais importantes do modernismo britânico.
“Ele é o único modernista britânico. O movimento modernista de língua inglesa foi liderado por Ezra Pound e T.S. Eliot. O Bunting era desse grupo, mas era o único britânico”, explica o poeta e tradutor.
Publicado em 1966, “Briggflatts” é um épico inspirado na própria vida do poeta, uma espécie de revisão e retratação de Bunting para com momentos de sua própria trajetória. Fortuna compara a obra à Divina comédia, na qual Dante desce às profundezas do inferno em busca de Beatriz. Em “Briggflatts”, Bunting imagina como teria sido sua vida, caso tivesse seguido ao lado da moça pela qual se apaixonou aos 14 anos. Ao imaginar, o poeta quase se arrepende dos caminhos escolhidos.
Natural de Northumberland, o último condado ao Norte da Inglaterra, na fronteira com a Escócia, o poeta moderno cresceu em uma sociedade pioneira na religião quaker, braço do protestantismo que pretendia resgatar a prática original do cristianismo. O nome do poema vem de Brigflatts Meeting House, um ponto de encontro de quakers em um condado vizinho ao qual o poeta nasceu. Nos arredores dessa casa, ele teria conhecido a moça com a qual fantasia uma história não vivida.
Bunting se tornou um viajante. Depois de deixar o Norte, trabalhou como jornalista e chegou a ser espião da Coroa britânica na Pérsia, emigrou para os Estados Unidos, casou e teve filhos. No entanto, nunca abandonou o caráter moldado na convivência com a comunidade religiosa. “Ele pertence a isso. Ele tinha uma autodisciplina, um comportamento ético muito elevado e isso se reflete na poesia dele”, avisa Fortuna.
Adepto de um certo hermetismo e atento para a oralidade, o britânico fazia poesia para ser recitada mais do que lida. Traduzir essa intenção foi uma das maiores dificuldades de Fortuna. “A segunda dificuldade é que ele traz muitas palavras regionais. Ele tinha uma visão de que o Inglês teria sido deturpado ao longo do tempo e que o Norte da Inglaterra teria mantido certas tradições linguísticas”, conta o tradutor.
Terminada a tradução, Fortuna voltou a se debruçar sobre a própria obra. Ele prepara um novo livro de poesia visual. Depois de Taturana, lançado no ano passado, é a vez de Um rugido do sol, programado para sair em 2017. “Estou fazendo um poema visual dentro dessa longa tradição histórica (da poesia visual) e também observando que tivemos um movimento de vanguarda no Brasil nos anos 1950 e 1960 que foi o concretismo”, avisa o poeta.
Ele não pretende se fixar apenas no período histórico, quer também fazer os poemas de seu próprio tempo e aproveitar os recursos da tecnologia, instrumento responsável por facilitar bastante a criação das formas visuais desse gênero literário. “A poesia visual é muito antiga, ela não é, necessariamente, uma poesia de vanguarda. A forma do poema na página, você já encontra no século 16. Mas fiquei muito fascinado com a utilização dessas novas tecnologias: hoje você pode utilizar fontes diferentes, colocar animação”, repara.
Enquanto trabalha no novo livro, Fortuna ainda se embrenha na repercussão das críticas à escolha de Ana Cristina Cesar como homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), realizada em julho. Para o poeta, Ana Cristina não chegou a consolidar uma obra madura porque morreu muito cedo, aos 31 anos. Se a FLIP queria homenagear um nome da poesia marginal, ele sugere, poderia ter escolhido Wally Salomão ou Paulo Leminski. “Infelizmente para todos, a obra da Ana Cristina é póstuma, foi construída pelos amigos e admiradores. A gente não tem mais como julgar se a autocrítica dela permitiria publicar a série de poemas que ela publicou em vida ou se aquele material que ela deixou disperso serviria para compor um livro ou teria valor aos olhos dela”, diz.
Ele também questiona o pioneirismo atribuído à poetisa quanto à valorização de uma voz feminina na poesia brasileira. “Quando ela edita o primeiro livro, em 1979, já havia saído no Brasil o livro Bagagem, de Adélia Prado, um livro extremamente importante na poesia brasileira porque era uma mulher que expunha o ser mulher; havia ali uma dicção feminina importante”, lembra. Abaixo, Fortuna fala sobre a polêmica, mas também sobre os caminhos que o levaram a Basil Bunting e sobre o lugar da poesia no mundo contemporâneo.
Briggflatts
De Basil Bunting
Tradução: Felipe Fortuna
Topbooks
162 páginas
R$ 39,90
ENTREVISTA / FELIPE FORTUNA
“A poesia visual não é necessariamente de vanguarda”
Como você descreveria a poesia de Basil Bunting?
É uma poesia muito influenciada por Ezra Pound, por uma espécie de redução das metáforas, um estilo muito ágil, nervoso, totalmente contrário a perfumar a flor. Ele não se deixa levar por metáforas fáceis, imagens simples, ele é muito direto, objetivo. Inclusive faz parte de um movimento que houve na poesia inglesa que é o objetivismo, justamente com a intenção de tratar o tema na sua essência, sem metaforizar exageradamente. Ele também tem uma grande tendência de trazer outros ritmos e influências de literaturas exóticas: existe na poesia dele uma grande influência da literatura persa, traduziu muitos livros do persa. Há muita alusão à mitologia, muita informação que entrelaça o histórico ao pessoal e que, muitas vezes, fica indecifrável. Existe uma relativa dose de hermetismo na poesia dele.
Como chegou em Bunting?
Não era um poeta evidente, tão conhecido assim. Em determinado momento, me perguntei quais são os grandes poemas da literatura mundial considerados grandes pelos críticos, pelos poetas. E de todos eles, o que não havia sido traduzido para o português era o Bunting. Em muitas línguas as pessoas consideravam Briggflatts um dos 100 poemas mais importantes dos últimos anos. Aí, fui buscar informações e acabei gostando muito do que li. São 717 versos no final. Nas memórias, ele diz que escreveu 20 mil, mas aí existe um processo de redução que é também uma técnica que Ezra Pound utilizava muito. Então, ele reduziu esses 20 mil versos para 717, é um poema com uma alta concentração de ritmos, de eventos.
Você falou em lista de poetas mais importantes da modernidade. A Ana Cristina você não inclui em uma lista de poetas mais importantes do Brasil. Por que não?
Vamos ser justos. A Ana Cristina Cesar, infelizmente para todos nós, morreu muito jovem, aos 31 anos, e deixou uma produção publicada em vida muito pequena, que não ultrapassa 90 poemas. Desde então tem sido feito um trabalho de recuperação da obra dela, o que acho muito válido e que poderia até representar uma espécie de complementação da obra dela. Infelizmente para todos, a obra da Ana Cristina Cesar é uma obra póstuma, que foi construída pelos amigos e admiradores. A gente não tem mais como julgar se a autocrítica dela permitiria publicar a série de poemas que ela publicou em vida ou se aquele material que ela deixou disperso serviria para compor um livro ou teria valor aos olhos dela. Na minha visão, a construção póstuma da Ana Cristina Cesar é equivocada. Ela erra ao construir uma obra que, provavelmente, não tem os valores completos daquilo que as pessoas dizem ter: encenação do sujeito, feminilidade. Mesmo porque ela foi interrompida. Ela não teve como completar essa obra.
Você foi muito criticado por questionar a homenagem na FLIP. Por que acha que isso ocorreu?
A escolha da Ana Cristina Cesar para ser homenageada pela FLIP foi alvo de muitas críticas e, muitas vezes, foram críticas agressivas. Coisa que não quero fazer. Aparecer no jornal e fazer uma análise crítica à escolha é outro papo, a pessoa se expõe e você acaba tendo inimigos, comprando briga. Os admiradores de Ana Cristina são admiradores mesmo, pessoas que ocupam posições prestigiadas na imprensa, no mundo acadêmico, orientadores de tese, e que têm todo o direito de induzirem seus estudantes a fazer uma leitura de Ana Cristina Cesar. Lamentei que mesmo outros autores da geração dela, como Waly Salomão, Leminski e Cacaso, poderiam até ser estudados em grupo. Digamos que a FLIP deseje homenagear a Ana Cristina como figura literária importante, que homenageasse um movimento da poesia marginal e do Waly Salomão, Leminski, Cacaso e dela. O que ia transparecer, nesse caso, é a superioridade da obra desses três em relação à dela. Isso por uma série de razões: razões de talento, primeiramente, e depois porque todos eles publicaram mais do que ela e desenvolveram uma obra. Então, é mais uma questão de analisar o que está por trás dessa escolha e lamentar.
Temos dificuldade de lidar com a crítica e com o debate no Brasil, de maneira geral, em todos os campos?
Temos sim. A gente não pode escapar do fato de que somos brasileiros e vivemos numa estrutura muito deficiente. O Brasil é um dos países com menor índice de leitura do mundo. Se você pega a população brasileira e vê qualquer estatística da Unesco, da ONU, vê que, junto com o IDH, baixo o Brasil tem um índice de leitura baixo. Temos uma faixa ampla da população que não lê. É alfabetizada, mas não lê. Então, o mercado editorial é um mercado elitizado, na maioria das vezes, e de acesso a poucos. Esse é o primeiro problema. Agora, você observa que pouco a pouco os suplementos literários foram desaparecendo dos jornais. Essa ideia do literário praticamente desapareceu dos jornais. Hoje, você tem suplemento de informática, de agricultura, de televisão, você tem uma indústria de entretenimento brutal que promove duplas sertanejas, DJs, cantores populares, mas que dá pouquíssimo espaço para a produção literária.
E qual o lugar da poesia nisso tudo?
Aparentemente, o poema literário subsiste de várias maneiras. Primeiro, porque sempre existe um público culto, educado, interessado em ler o poema. A questão do poema está relacionada à própria existência da língua. A língua é radicalmente mais utilizada no poema. É quando você pode transformar a palavra em música, em rima, faz aliterações, vai contra a gramática, contra o cânone. Então, o poema continua sendo uma aventura interessante para os leitores.
E a poesia visual?
A poesia visual é muito antiga. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, ela não é necessariamente uma poesia de vanguarda. Muitos poetas já exploravam o materializado da palavra há muito tempo. A forma do poema na página, você já encontra no século 16. Mas fiquei muito fascinado com a utilização dessas novas tecnologias que estão no computador. Hoje, você pode pegar um programa e pode utilizar fontes diferentes, colocar animação de uma maneira que era quase impossível uns anos atrás. Lembro que Augusto de Campos, quando fazia poemas concretos, usava letra set, decalque seco, montava pacientemente. Hoje, qualquer programa Word tem 600 fontes, tamanhos, itálicos, negritos. É muito fácil, tecnicamente, usar a palavra e explorar a materialidade dela. Um pouco baseado nessa tradição e usando os recursos da tecnologia é que decidi fazer novos poemas visuais.
Desde que você estreou, em 1986, o que mudou na poesia?
Uma coisa que mudou foi o advento da internet. Isso permitiu uma divulgação muito forte dos poemas e dos interessados. Permitiu a montagem de páginas com muito mais facilidade e o acesso à obra. Na minha página tenho tudo, críticas, livros, ensaios. A segunda mudança importante foi o fato de que você tem o “print on demand”: à medida que o livro vai esgotando no mercado, as pessoas vão imprimindo. Isso é possível porque têm umas máquinas que podem imprimir 200 livros e baratear o custo final para não ter estoque, depósito, para economizar nessas partes. Existem hoje muitos livros circulando por aí feitos com base na demanda. Isso é interessante, não existia antes porque não valia a pena fazer menos de mil, 2 mil livros na gráfica. Isso barateou o preço do livro. Outra mudança importante é o acabamento gráfico do livro, que melhorou. Com o tempo, as edições deixaram de ser improvisadas e têm agora um padrão gráfico superior às edições de poemas nas décadas de 1960 e 1970. E o mundo está muito mais globalizado. O poeta hoje está em um mundo mais acelerado. Ele tem mais responsabilidade de refletir sobre esse tempo mais acelerado da história.