1. A Ciência dos Personagens
Antes mesmo de se considerar a globalização como um processo econômico e comunicativo, a ameaça nuclear foi a primeira condição em que as sociedades se perceberam unidas em torno a um destino comum. O lançamento da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, em 1945, evidenciou a possibilidade de destruição total do planeta: separadas por idéias e ideologias, as sociedades descobriram uma desagradável fraternidade, fundamentada na extinção da vida humana. A observação não muito serena desses fatos provocou, às vezes, atitudes desesperadas, com ataques incendiários à tecnologia. Percebeu-se na idéia mesma de progresso um mecanismo de desordem que poderia conduzir à destruição. A humanidade passava a viver em estado de alerta, pouco importando se havia ou não uma guerra declarada. Surgiram, em diversas sociedades, previsões relativas aos resultados apocalípticos do domínio humano sobre a natureza. Criticou-se o conhecimento científico por sua perda de objetivo: transformada em vilã, a ciência produziria a destruição, invertendo, assim, a relação do ser com o seu entorno. Mais do que em outra época de palpável progresso tecnológico, o desenvolvimento de artefatos militares passou a provocar admiração e medo, tanto pela intensidade quanto pela extensão de seu poder destrutivo. A vida humana, nessas condições, passou a ser uma sobrevida. E a poesia, uma das defesas mais ineficazes contra as radiações, produziu diversas reflexões sobre o estado de sobrevivência das pessoas, submetidas ao progresso que produziu a iminência da morte.
Houve, entre os poetas brasileiros, alguma inquietação com a ameaça nuclear. O júbilo com o fim da guerra e a vitória dos aliados foi decerto maior do que a meditação sobre o aftermath tenebroso do conflito: a explosão da bomba atômica e a divulgação das atrocidades cometidas nos campos de concentração. No poema “Com o Russo em Berlim”, de A Rosa do Povo (1945), Carlos Drummond de Andrade transmite até mesmo tranqüilidade, e não a costumeira angústia que se lê em outros poemas daquele livro:
Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranqüilo.
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.1
Anos depois, em Lição de Coisas (1962), investe tenazmente em “A Bomba”:
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai (…)
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar (…)
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir , mas preliba
[o instante inefável2
Vinicius de Moraes, com “A Bomba Atômica”, de Poemas, Sonetos e Baladas (1946), traduz a ameaça nuclear segundo uma peculiar epifania, na qual a bomba se vê transformada em mulher, erótica e mórbida, que lhe cai do céu. A reação do poeta é instável, oscilando entre a atração e a tristeza, mas ciente da bomba que surge como “aterradora miragem” e “também mata a guerra“:
Pomba tonta, bomba atômica
Tristeza, consolação
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do hélium
E odor de rádium fatal
Loelia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.3
No livro seguinte, Novos Poemas (1959), haverá em “A Rosa de Hiroxima” um aproveitamento da imagem floral daquele último verso, num poema que, a rigor, não tangencia o tema da bomba, mas sim o dos seus efeitos radioativos devastadores, das conseqüentes anomalias e, nas entrelinhas, o que existe de horrendo em fabricar a bomba:
Pensem nas feridas
como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida4
Murilo Mendes, em “Explosões”, exibiu a mesma rejeição e, mais radical, propôs “fuzilar a Bomba“, com seu potente b maiúsculo, ao fim de um poema altamente liberador:
O homem pode:
Soltar a vida. Fuzilar a Bomba. Reinventar a ode.5
Os poetas brasileiros que se inspiraram na existência e na deflagração da bomba atômica não manifestaram interesse, curiosamente, por qualquer outro aspecto inédito da Segunda Guerra, entre os quais o do extermínio dos judeus nos campos de concentração. É provável que o efeito global da bomba, a ameaçar cada forma de vida no planeta, tenha justificado a opção daqueles poetas. Mas não se pode deixar de perceber na omissão do tema do Holocausto na poesia daqueles que, por outro lado, escreveram tão ardentemente sobre a ameaça nuclear, uma lamentável evasão ou ao menos uma deformação perceptiva, como se a existência dos campos de concentração tivesse um caráter periférico à guerra. De resto, a perturbadora vacilação dos poetas em enfrentar o problema do extermínio humano fora também detectada em T.S. Eliot por George Steiner, que se escandaliza ao ler “as persistentes ambigüidades sobre o tema do judeu na poesia e no pensamento” do autor de Notes Towards the Definition of Culture (1948), publicadas três anos depois das descobertas “que, com certeza, alteraram nosso sentido dos limites do comportamento humano.”6 Será necessário concluir que tem sido dada maior importância aos artefatos técnicos e tecnológicos de destruição, não apenas à bomba atômica de 1945, mas também ao napalm utilizado vinte e cinco anos depois na Guerra do Vietnã, do que à destruição planejada e selecionada que se praticou nos campos de concentração. A bomba provocou horror por sua dimensão totalizante e indiscriminada: aparentemente, todos fomos testemunhas daquela ação mortífera; mas o horror praticado pela discriminação não provocou o mesmo sentimento de pânico e solidariedade.
Entre os poetas brasileiros, foi Cassiano Ricardo (1895-1974) quem conformou a fase final da sua poesia a uma sistemática denúncia do estado de sobrevivência em que se encontra a natureza humana, ameaçada por alguns avanços tecnológicos e pela explosão da bomba atômica. Nos seus livros derradeiros, principalmente em Jeremias Sem-Chorar (1964) e Os Sobreviventes (1971), o poeta apresenta uma reflexão pessimista sobre a ciência e o futuro, em que são referidos os aspectos desumanizadores do progresso e uma insistente desconfiança pela evolução técnica. A percepção pessimista da tecnologia e, mais ainda, do desenvolvimento armamentista indica o esgotamento de uma tendência muito conhecida das vanguardas históricas – evidente, por exempolo, no futurismo de Marinetti, com sua tecnofilia e declarado fascínio pela violência e pela guerra. O interesse pelo futuro, após a explosão da bomba atômica, passou a repelir qualquer noção de supremacia de um grupo sobre outro. O avião é o produto industrial que provoca no poeta o pessimismo e as contradições mais agudas: o avião é o emblema de uma mudança de condição essencial do ser humano, que se viu arrancado do solo. Na poesia de Cassiano Ricardo, o avião e a viagem aérea são desafios que “desambientam” o indivíduo da sua natureza terrestre e que, tal como no mito de Ícaro, induzem ao acidente e à morte. No poema “O Avião e o Pedestre”, do livro Um Dia Depois do Outro (1947), já se configura a oposição entre a dimensão pedestre e a dimensão aérea, em que o poeta abandona as eventuais vantagens de ser um cidadão que caminha por sua cidade e passa a “olhar de novo o azul“, a manter novas “relações / líricas com o universo“, dirigindo-se ao avião:
Tu me convenceste
de que o mundo mecânico
é a realização,
hoje, do mundo mágico.
Tu lembras uma cruz
voando horizontalmente.
Tu és, enfim, a imagem do
do meu próprio idealismo
como o único pássaro
que conserva a asa aberta
mesmo quando pousado
no chão, sobre o abismo.7
No último poema do livro, “Elegia”, encontra-se afinal a primeira definição de um estado vivido pelo poeta: o estado de inocência. O poeta indica a origem religiosa desse estado, calcada no mito do pecado original, mas confessa haver voltado à inocência a partir do momento em que o mundo se transformou num “enorme brinquedo / nas minhas mãos.” Diante dos crimes cometidos pelos outros, da explosão nas Ilhas Biquini e da certeza de que “o universo invadiu a nossa casa“, o poeta se resigna à sua condição:
(Já é inocente quem está em perigo.
Basta-me entrar num avião pra ficar inocente
e viver no planeta onde se inventou a bomba atômica
pra não ter culpa.)8
É marcante a convicção de Cassiano Ricardo no que diz respeito aos aspectos mais rejeitáveis da vida contemporânea: primeiramente, o progresso produziu um movimento regressivo, ao transportar o indivíduo para um estado primitivo e original no qual se vê, outra vez, e segundo essa simbologia, diante do mistério e na iminência de pecar. O poeta, vivendo em estado de inocência, não sente culpa, pois o mundo já se lhe apresentou pronto e violento: nunca decidiu sobre os fatos mais importantes e ameaçadores do planeta e manifesta a sua inconformidade com as sociedades que produziram a bomba atômica. Existe uma generalizada sensação de perigo e de iminente destruição: pouco a pouco, o poeta descobre que o planeta se transformou num ambiente inóspito, numa casa insegura. E, obviamente, sem possibilidades de fuga. Seria preciso, pois, expandir uma noção comentada por Paul Ginestier quando informava que, no início da era industrial, “os poetas da cidade vacilavam entre a admiração e o medo” quando confrontados com a escala gigantesca dos espaços urbanos em que se mesclavam os novos edifícios e as multidões.9 Na poesia de Cassiano Ricardo, o confronto atual ocorre com todo o planeta, uma vez que as invenções, em especial as vinculadas aos transportes das pessoas, e ainda a ameaça atômica converteram os perigos existentes na cidade para uma escala mundial.
Não se deve esquecer, ainda, que a desconfiança do poeta em relação à tecnologia vem da percepção de que os avanços na área também multiplicaram a freqüência e a magnitude dos acidentes. Assim tem início uma interpretação apocalíptica do progresso, ainda mais intensa e radical do que a meramente pessimista, segundo a qual o progresso acaba submetendo as pessoas a hábitos novos como o da fuga para abrigos antiaéreos. Mais uma vez, numa análise sobre a conquista do espaço fluido, em que relembra o desafio à gravidade como uma característica contemporânea, Paul Ginestier menciona o bombardeamento aéreo como um dos principais temores do século XX.10 É provável que Cassiano Ricardo concordasse plenamente com a assertiva e ainda recordasse um verso do seu poema “Elegia”:
Que é o céu, senão uma catástrofe suspensa?11
Em Os Sobreviventes, o tema da condição humana submetida à destruição trazida pela ciência e pela tecnologia alcança o plano de maior elaboração e consistência na obra poética de Cassiano Ricardo. Trata-se de um dos raros livros de poemas que não se compõe de poemas avulsos ou autônomos: com pouquíssimas exceções, todos os poemas do livro estão vinculados uns aos outros – e não é incomum encontrar citações dos versos de um poema em poemas posteriores. Os Sobreviventes formam um compacto e denso depoimento sobre a desilusão contemporânea, cuja principal característica é a consciência trágica do fim. Ao contrário dos poemas que tratam da bomba atômica, os poemas de Os Sobreviventes não mencionam uma só vez as cidades japonesas atingidas, como se a noção mesma de espaço, tendo em vista o caráter global da destruição, fosse irrelevante. O que importa a Cassiano Ricardo é denunciar a máscara do progresso, segundo a antevisão de um aspecto grotesco do futuro: a vocação profética do poeta, como se lê nas “Notas” finais do livro, está documentada nas matérias que lê nos jornais. Trata-se, pois, de uma apreciação da ciência como notícia, como fato jornalístico; quase sempre, da ciência como catástrofe. O elemento condutor dessa sensibilidade apocalíptica surge da transição daquele estado de inocência para o estado de sobrevivência. Fundamentando-se numa citação de Henri Lefebvre, em Métaphilosophie (1965), o poeta descobriu um “sistema da sobrevivência” a que se reduziu a vida no século XX. Na nota número 13, Cassiano Ricardo informa o sentido que deu à palavra sobrevivente em seu livro, assim estabelecendo uma relação inescapável com a morte e com o processo globalizador:
A palavra “sobreviventes” adquire uma nova acepção no presente livro. No mundo da bomba atômica somos (todos) meros sobreviventes (porque a morte nuclear só nos permite viver por seu adiamento). (…) Além disso, dada a tremenda contigüidade humana de um mundo só, somos, todos, irrecorríveis vizinhos.12
O sentimento de irmandade e de vizinhança, espécie de experiência coletiva do progresso ambíguo, é o traço comum a indicar o sentimento de admiração pelos novos engenhos e a melancólica apreciação dos acidentes. Em “O Quadrimotor”, salienta-se a condição comum e passageira dos que se encontram dentro do avião:
um quadrimotor
a sensação
de que vamos nele pra
onde seus passageiros
vão
não se sabe pra onde
irmãos por
planetização
(…)
assim o quadrimotor di-
ga a alguém
seja quem for que estou
pensando nesse alguém
que nem
nome tem
mas de quem sou irmão
por planetização13
No poema “O Antípoda” está certamente mais definida a vinculação do acidente aéreo com a existência de um mundo em que as comunicações são velocíssimas, quase instantâneas, trazendo para o receptor a sensação de que ele mesmo sobreviveu ao acidente:
à hora em que o Boeing
caiu sobre o Fujiama
os budistas
tocavam tambores
em homenagem
aos mortos de outro a-
vião na véspera
a mesma chama
chamando outra chama
no mesmo igneodrama
a radiofoto
do avião caído no Fuji-
ama
já no jornal do mesmo
dia
já o jornal em minha
mão
No contexto de uma discussão sobre a morte da “autoridade humanística”, George Steiner corrige uma antiga opinião pessoal sobre a impossibilidade de que as ciências exatas possam contribuir, com as metáforas extraídas a modelos científicos, para a interpretação de obras artísticas. E reconhece: “É muito provável que as ciências venham a fornecer uma parte cada vez maior de nossas mitologias e referências imaginativas.”14 Ocorre na poesia de Cassiano Ricardo uma apropriação crítica das novas metáforas que se vinculam à aeronáutica e à energia nuclear: o poeta não permite que a ciência mude os seus hábitos de modo imperceptível, assim como não saúda com entusiasmo o advento de alguma tecnologia. Não há esperança em Os Sobreviventes: há constante melancolia e desconfiança. O progresso, no livro, tem caráter conspiratório e costuma trair o indivíduo, mudando-lhe a condição em que se encontra, deformando-o.
Encontra-se no livro João Torto e a Fábula (1956) outro expressivo e longo conjunto de poemas que trata da ameaça nuclear e, mais especificamente, dos horrores provocados pela bomba de hidrogênio. João Torto é um pescador que vê “cair a bomba de hidrogênio sobre a ilha deserta”, conforme se lê no “Prefácio Desnecessário”, que ainda transmite outras informações:
Olhou-se no espelho, o seu rosto estava torto. Sentiu-se inocente, como homem algum o havia sido antes.
Além de torto, monstruosamente inocente.15
O personagem do livro é, de fato, o primeiro sobrevivente mencionado na longa investigação poética de Cassiano Ricardo, que por quase duas décadas mostrou sua obsessão pelo tema nuclear. Trata-se, obviamente, de um personagem coletivo, a bem dizer uma encarnação simbólica da humanidade. O poeta faz atravessar a sua meditação por dois eixos dependentes: um, o do estado de inocência do ser humano diante da bomba, que dissemina a destruição sem alarme ou consulta; outro, em etapa posterior, o da deformação da natureza, atingida pelos efeitos radioativos. A inocência humana, para o poeta, é o equivalente do alheamento em relação aos processos de decisão e ao alarmante perigo de viver e procriar no planeta entregue à rivalidade das potências atômicas. São muitos os momentos em que se exprime o canto de solidariedade do poeta, que talvez possam ser sintetizados nas estrofes de “Os Deformados”:
Inocência, não diante das estrelas,
nem diante da manhã orvalho e rosa,
mas de uma bomba atômica; e assim todos
desfilamos na rua, como doudos.16
Tanto quanto o estado de inocência, a deformação já estampada no nome de João Torto é coletiva e até mesmo universal, e traduz, na poesia de Cassiano Ricardo, uma espécie de lancinante lamento:
O habitante da Terra
traz no rosto o estigma
de quem, como o infeliz rei,
decifrou o enigma.
Onde crime mais grave
que alterar-se a silhueta
de uma criatura, de uma
simples borboleta,
não por arte, magia,
ou graça de pintura,
mas por lesão dos seres
em sua argila obscura.17
Uma vertente irônica sobre a deformação se encontra no poema “O Cacto”, no qual se apresenta o estranho modo de solidariedade entre os seres humanos, que se multiplicam grotescamente e, assim, alcançam novas dimensões:
Uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma folha sobre outra,
formaremos um grande cacto.
De cada braço, já no espaço,
nascerá mais um braço, e deste
outros braços, qual ramalhete
de flores para um só abraço. (…)
Para provar, por B mais H,
que o homem, animal suicida,
já sabe fabricar estrelas…
Se é que Deus disto duvida.18
Em referência dramática, no longo poema “Visita aos Deuses”, cita explicitamente os efeitos do bombardeamento de Hiroshima e a seqüência de deformações a que ficaram sujeitos os habitantes daquela cidade. Não se atenua a descrição da terra devastada, o cenário calcinado e quase extinto da cidade. Na poesia de Cassiano Ricardo é marcante, portanto, a consciência histórica associada ao repto humanista de quem desfia, longamente, um ataque à utilização bélica da tecnologia nuclear. Consciência planetária igual à do escritor japonês Kenzaburo Oe, que, em sucessivas reportagens sobre os efeitos da bomba atômica sobre Hiroshima, afirmava que a vida humana fora distorcida e atormentada por aquela explosão e ainda que havia surgido, a partir de não, uma nova forma de humanismo.19 Ambos os escritores coincidem na percepção de que o advento da bomba atômica criou uma nova era da humanidade, em que a vida passou a ser constantemente ameaçada, convertendo-se em sobrevida.
O estado de sobrevivência é também um estado de alerta no qual a vida é diariamente auscultada: o céu, o espaço mais ameaçador em que transita a tecnologia, não é mais a tela ideal para a contemplação, e muito menos o lugar de onde se espera alguma mensagem divina:
Míssil de asa fechada o anjo
balístico risca o céu
de um horizonte a outro.
Estamos desde já sob a sua
(m)ira,
na álgebra das distâncias.20
O progresso não ofereceu uma vida mais duradoura. Não trouxe à vida dimensões mais permanentes: numa alusão ao verso de Carlos Drummond de Andrade, o progresso fez surgir o moderno e desaparecer o eterno. No mundo de transitoriedade e iminência, repleto de acidentes devastadores e de bombas, Cassiano Ricardo fez sua descoberta ao mesmo tempo pessoal e coletiva: uma fraternidade irremediavelmente destinada à desaparição. No poema “Festa de Aquém-Campa”, a festa e a alegria referem-se meramente ao ato de acordar, espécie de milagre que ocorre no mundo ameaçado:
à noite ontem
uma manchete
nuclear
no ar
não
sabíamos
se amanhecerí-
amos
hoje21
“Guerra Fria”, “Vietnã”, “O Supervivo” são títulos de poemas de Os Sobreviventes que revelam a atenção de Cassiano Ricardo para as notícias que envolveram os conflitos mundiais e as previsões sobre as sociedades. Não se pode interpretá-los como poemas circunstanciais, pois o que de fato lhes dá uma conformação superior é a obsessão do poeta com as ameaças globais dos armamentos e, ainda, a precária condição pós-guerras na qual o ser humano passou a existir na era nuclear. A fraternidade de seres que o poeta descobriu (“irmãos em globo“) vive em estado terminal.
2. Os Personagens da Ciência
O mundo rejeitado por Cassiano Ricardo é o mundo concebido por Herman Kahn, a quem o poeta explicitamente nomeia, no título de um poema, de “O Supervivo”. O pesquisador norte-americano, que se fez famoso no auge do conflito entre os Estados Unidos e a então União Soviética, foi responsável, em 1952, pelo projeto de uma bomba de hidrogênio. Trabalhando para o Governo, estabeleceu um grupo de pesquisa sobre estratégia nuclear que, entre outras atividades, desenvolveu modelos de simulação para as diversas hipóteses de guerra nuclear. Ficou famosa, na época, a proposta de uma “Doomsday Machine” – basicamente, um computador que tomaria a decisão final de acionar uma seqüência de bombas de hidrogênio assim que detectasse um ataque consistente do país inimigo. O resultado final desse suposto contra-ataque seria a morte de mais de um quarto da população terrestre. Herman Kahn supunha, primeiramente, que os modelos de simulação e de tomada de decisão que concebera eram adequados para os interesses daquela etapa histórica. Acreditava, também, que a criação de máquinas decisórias traria um fator de segurança muito mais alto do que deixar a decisão do início de um ataque nuclear para as pessoas. Por fim, disseminou a idéia de que uma guerra nuclear, nas proporções que imaginava, não provocaria o aniquilamento de todos os seus habitantes: em resumo, seria possível a hipótese de uma guerra nuclear com vencedor. Herman Kahn, já convertido no mais famoso consultor para estratégias nucleares, preconizava que um país deveria ter a possibilidade e a capacidade de iniciar a guerra ou disparar primeiro (“credible first-strike capability”). Na reunião de suas conferências, publicada em On Thermonuclear War (1960), evidenciou-se que Herman Kahn estimulava o uso de armas nucleares não como defesa, mas sim como primeiro ataque. E escreveu: “War is a terrible thing, but so is peace. The difference seems to be a quantitative one of degree and standards.”22 No livro seguinte, Thinking About the Unthinkable (1962), aprofundou suas teses sobre a aparente necessidade e iminência do confronto nuclear, rejeitando os ataques que o acusavam de ser paranóico ou assassino. Principal colaborador do Strategic Operations Committee norte-americano, Herman Kahn considerava, apesar de reconhecer como otimistas diversas hipóteses em relação à sobrevivência humana, que seria mais conveniente aprofundar os estudos de uma estratégia de eliminação parcial da população do planeta do que ficar exposto ao ataque inimigo.
Uma das contribuições involuntárias de Herman Kahn foi a de haver criado o imaginário do que poderia ser os possíveis cenários de uma guerra nuclear. Tratando da destruição do planeta de maneira objetiva, ele fez parecer factível e iminente a eclosão de um confronto que significaria o fim da organização das sociedades tal como se conhece.
A crítica ironicamente mais destrutiva às idéias de Herman Kahn, bem como à presença do estrategista nos debates sobre o futuro, foi realizada por Stanley Kubrick no filme Dr. Strangelove (1964), que trazia o coloquial subtítulo de Como Eu Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Bomba. O filme satiriza um general que está convencido de que o exército soviético pretende poluir os “preciosos fluidos corporais” dos americanos. Há também referência a uma “Doomsday Machine” e cômicas alusões aos motivos que podem acelerar ou deter a decisão final de destruir com a vida no planeta. Provavelmente, Kubrick criou com seu filme a mais eficiente desmontagem dos elementos que constituíram a “deterrence policy” daqueles anos de Guerra Fria – tudo reduzido a uma comédia de erros em que a paranóia nuclear, aliada a a teorias de sofisticada justificação científica, sobrepujou qualquer outro tema de política internacional.
Em Os Sobreviventes, Cassiano Ricardo refere-se a Herman Kahn como “supervivo”, numa implícita oposição aos demais seres humanos, que são referidos em outros poemas do livro como “sobreviventes” dos dias que poderiam não ter existido. Agindo como os críticos liberais costumeiramente atormentados pelo pesquisador norte-americano, o poeta compõe uma peça de raro humor sobre a figura física e intelectual de Herman Kahn:
1
Supervivo
a chave da manhã
no bolso.
Herman Kahn.
Q.I. 150;
140 quilos
de corpo.
2
Gordo demais pra ver
a linha curva
do horizonte
que passa por detrás
de sua montanha
ruiva.
Herman Kahn
de cor romã, super-
vivo,
carnalmente
osseamente.
O terror, para ele,
algo de um “ruído
branco”.
Diferente
de nós; nós, os ci-
entes,
os conscientes
de que só por
favor
dos 4 reis
acordamos
ainda vivos, esta
manhã. Herman Kahn.
3
140 quilos, cor romã
eu te pergunto:
quando um sol total
te obrigará a ler
o grito
embora mudo
que está escrito
dentro da pedra?
Herman Kahn
cor romã
sem um mínimo
de Brasil no corpo
espesso;
com a tua futuro-
logia
calcada em
“hapennings”
do obsoleto.
Em preto.
4
Herman Kahn
cor romã
a tua pré-ciência,
vã,
não vale o til
que uma jaçanã
com seu gorjeio
põe na palavra
manhã
do amanhã.23
O poema, que tematiza as profecias apocalípticas fundamentadas no uso da arma nuclear, está construído segundo um sistema de oposições: estabelecem-se nele fortes dualidades entre a grandeza da inteligência do cientista e o alto peso do seu corpo; entre os pessoas que são cientes e conscientes e pessoas que são supervivas; entre o terror da bomba atômica e o eufemismo do “ruído branco”; a luz total do sol em oposição ao preto; e, implicitamente, Cassiano Ricardo critica o instrumental sofisticado de análise que se mostra obsoleto (uma pré-ciência), quando não inútil para perceber dimensões do poético (a linha curva do horizonte, o gorjeio da jaçanã) ou do que sejam os valores nacionais (um mínimo de Brasil). O poema é uma decidida crítica, que transmite também a dimensão de um confronto – por exemplo, quando o poeta faz uma pergunta diretamente a Herman Kahn. Poema que se abre à esperança, sobretudo na quarta seção, quando se refere a uma “manhã / do amanhã”. Parece um tanto ambígua a referência aos “4 reis” do poema: a tradição bíblica, que é constante em Os Sobreviventes, levaria a crer que se faz referência ao conflito dos “quatro reis contra cinco” que é narrado em Gênesis 14. Mas nada, no episódio, se aproxima do sentido do poema “O Supervivo”. Também parece inadequado supor que se faz referência aos quatro cavaleiros do Apocalipse com suas pragas (Ap 6, 1-8), embora em outros poemas do livro surjam alusões mais pertinentes com essa hipótese. Numa seção de Os Sobreviventes, intitulada “O Teatro dos 4”, Cassiano Ricardo não outorga às figuras dos quatro reis nenhuma conformação de natureza bíblica, tudo levando a crer, como ocorre freqüentemente na poesia de William Blake, que se trata de uma mitologia pessoal de que o poeta se utiliza para expor idéias e cenários.
Existe, porém, um contraponto sugestivo em Os Sobreviventes que diz respeito à idéia de progresso: se o mundo preconizado por Herman Kahn, mundo fundamentalmente aéreo e apocalíptico, é ameaçador e sem esperança, o mundo submarino pesquisado pelo francês Jean-Marie Pérès indica uma possibilidade de conciliação com o avanço tecnológico. Cassiano Ricardo se refere ao oceanólogo e biólogo marinho na primeira nota do livro, mostrando que seu conhecimento das “técnicas de exploração submarina” desenvolvidas por Pérès lhe foi transmitido por um artigo traduzido e publicado num jornal paulista.24 Diretor da Estação Marinha de Endoume, em Marselha, o biólogo francês desenvolveu trabalhos sobre o sistema ecológico marinho e as relações dos organismos vivos com o seu meio, o que representou uma importante evolução dos tradicionais estudos de fisiologia dos animais subaquáticos. Com ele trabalhou Jacques Picard, cujas pesquisas em batiscafo também ficaram célebres. Em Os Sobreviventes, Cassiano Ricardo refere-se a esse mundo submarino como se nele houvesse encontrado um refúgio natural – não um abrigo anti-aéreo, mas uma proteção que a ciência lhe desvendava.
Uma seção inteira de Os Sobreviventes, composta de seis poemas, intitula-se “Jean Marie e Seu Batiscafo”. O cientista francês personifica a possibilidade de que as invenções e as explorações de dimensões até então não alcançadas ocorram sem atrito e sem violência, com o estabelecimento de um diálogo:
Jean Marie
dialoga com um jovial golfinho
pelo hidrofone.
Ouve-lhe a voz gutural
quase humana.25
Num dos poemas, Jean-Marie Pérès é comparado a um poeta “dos peixes que são seus ritmos” e a vida mesma a “Uma aula / de oceanografia“. Há portanto um fascíncio com o mundo abissal e à comunicação que ali se estabelece. Descer ao fundo do mundo se opõe, assim, à impetuosidade da viagem aérea e a todas as ameaças que vêm do céu: a dimensão submarina da vida está voltada para a pesquisa e para o contato, para o exame das realidades recônditas e não reveladas aos olhos, para a organização silenciosa de um universo. O pesquisador Pérès se opõe ao futurólogo Kahn, e assim também as suas respectivas ciências. Submerso, realiza-se uma viagem ao passado na qual as figuras submarinas se confudem com as imagens míticas da memória, tal como ocorre nesse comentário sobre as baleias:
Desde as de Sindbad até as
da Bíblia.
Até Moby Dick.
Figuras impressas na água
de um dique:
a sua
memória.26
Por mais estranhas que sejam as formas de vida, nada ameaça o cientista e o poeta: o mar é um “não-me-deixe“, profundo e seguro. E, ironicamente, como recorda Paul Ginestier, “a história da civilização demonstra que se foi mais fácil conquistar o mar do que a terra. (…) Além disso, o mar oferece um descanso para a psique humana ao retirar o homem do elemento no qual ele se acostumou a operar.”27 O mundo marinho, em Os Sobreviventes, possui de fato uma peculiar representação de fronteira entre o mundo dos seres viventes e o mundo mítico, que se encontra nos limites da imaginação. Mas essa fronteira é dupla: também divide o mar e o ar, e, conseqüentemente, dois usos muito diferentes, quando não contraditórios, do sentido do progresso e da ciência. No livro, há uma sugestiva opção pelo exame profundo do planeta, e expressiva rejeição pela “decolagem” ou pela vida no ar.
O mar é um abrigo essencialmente distinto do abrigo anti-aéreo: neste último, a pessoa se torna sobrevivente. Com ironia, Cassiano Ricardo comenta, num poema de Um Dia Depois do Outro (1947), os seus temores quando o seu corpo morto estiver exposto aos olhares daqueles que o velam. E escreve:
É o natural pudor de ficar, sobre a mesa,
em demorada exposição, como um troféu.
Enquanto se discute, entre os presentes,
se vou pra um abrigo antiaéreo, ou pro céu.28
O horror do poeta à vida subterrânea abre uma via de interpretação possivelmente rica, mais ainda quando se recorda a vasta seqüência de poetas modernos que se interessaram sobre esse aspecto dos centros urbanos – a envolver a construção dos metrôs e a população que transita por baixo da terra. Para fins de uma análise sobre a noção da sobrevivência humana, restaria fazer um exercício prospectivo, uma vez aparentemente superada a expectativa da destruição total pela arma nuclear, sobre qual seria um possível e novo tema apocalíptico. Tudo indica que o desequilíbrio ecológico é esse tema, com seus deprimentes cenários de desertificação, derretimento da calota polar, poluição do ar e do mar, contaminação química, desflorestamento, extinção de espécies. A poesia, que se expressa comumente pela perplexidade e pela impotência, estará decerto presente a mais esse exame, que parece ainda mais extenso: pois deixará de inspecionar artefatos atômicos e passará a inspecionar a própria vida.
Caracas, 9.10.99
1 Reunião (Rio de Janeiro: José Olympio, 8a edição, 1977), p.137.
2 Lição de coisas (Rio de Janeiro: José Olympio, 1962), p.83-87.
3 Obra poética (Rio de Janeiro: José Aguilar, 1968), p.327.
4 Op. cit., p.350-351
5 Convergência (São Paulo: Duas Cidades, 1970), p.133.
6 George Steiner, No castelo do Barba Azul – Algumas notas para a redefinição da cultura (São Paulo: Campanhia das Letras, 1991), p.44. Tradução de Tomás Rosa Bueno.
7 Poesias completas (Rio de Janeiro: José Olympio, 1957), p.323.
8 Op. cit., p.353.
9 Paul Ginestier, The poet and the machine (North Carolina: The University of North Carolina Press, 1961), p.45. Tradução de Martin B. Friedman.
10 Op. cit., p.128.
11 Cassiano Ricardo, Op. cit., p.353.
12 Os sobreviventes (Rio de Janeiro: José Olympio, 1971), p.258.
13 Op. cit., p.9 e 10.
14 Linguagem e silêncio (São Paulo: Companhia das Letras, 1988). p.34. Tradução de Gilda Stuart e Felipe Rajabally.
15 João Torto e a fábula – 1951-1953 (Rio de Janeiro: José Olympio, 1956).
16 Op. cit., p.164.
17 “A Cidade Confusa“, Op. cit., p.38-39.
18 Op.cit., p.32-33.
19 Kenzaburo Oe, Hiroshima notes (New York: Grove Press, 1996), p.21 e p.83. A edição original dos textos data de 1965.
20 “Plebiscito”, in Jeremias sem-chorar (Rio de Janeiro: José Olympio, 1964), p.27.
21 “Festa de Aquém-Campa”, in Os sobreviventes, p.7.
22 On thermonuclear war (New Jersey: Princeton University Press, 1960), p.228.
23 Os sobreviventes, p.77-79.
24 O texto completo da nota em questão é o seguinte: “Jean Marie (Jean Marie Pérès, in O Estado de S. Paulo, de 4-9-60) com a suas ‘técnicas de exploração submarina’, é que motivou o poema que tem por título o seu nome (p.102). Em grande parte, a enumeração e descrição abissais são feitas com palavras suas.” Op. cit., p.255.
25 Op. cit., p.99.
26 Op. cit., p.104.
27 Paul Ginestier, Op. cit., p.103 e 104.
28 “‘Pose’ Pra Retrato”, in Poesias completas, p.317.