Correio Braziliense
Suplemento Pensar
Sábado, 4 de dezembro de 2010
EM DEFESA DA PROVOCAÇÃO
Poeta e crítico literário, Felipe Fortuna critica o “elogio mútuo e a cumplicidade fraterna” dos colegas e afirma que, no Brasil, o debate de ideias é percebido como ataque pessoal
entrevista a Carlos Marcelo
Diplomata de carreira, Felipe Fortuna não teme o combate travado em praça pública, sem subterfúgios nem meias-palavras, quando a poesia entra em cena. Poeta com quatro livros publicados, dedica-se com entusiasmo e convicção à crítica literária – e não abre mão de mirar também em seus pares. Bate forte no compadrio do elogio recíproco, prática recorrente entre escritores. “Então está combinado: eu escrevo o poema no domingo e você publica um comentário elogioso no sábado. A literatura brasileira só acabará quando for abolido o fim de semana.” Felipe reuniu no livro Esta poesia e mais outra (Topbooks) alguns dos textos mais contundentes que publicou no caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil. Há análises nada apaziguantes de itens da obra de Armando Freitas Filho, Haroldo de Campos, Marcus Accioly e Waly Salomão. E também tentativas de destacar poetas que considera menos valorizados, como Joaquim Cardozo (“Essa ‘cria melhor’ que o Brasil ignorou, um herói discreto e silencioso na poesia de João Cabral de Melo Neto), José Paulo Paes e os versos eróticos do cineasta Sylvio Back. É o que Antonio Cicero chama, no prefácio, de “uma série de textos de crítica literária autêntica e isso, como é notório, vinha há muito tempo tornando-se cada vez mais raro no Brasil”. Filho de Fortuna, cartunista homônimo da trupe do Pasquim e que assinou a arte de diversas capas da Veja nos anos 1970, Felipe também se dedica a analisar nomes da produção estrangeira e se permite, em tom de blague, desmascarar as relações entre os mundos literários britânico e brasileiro no hilário “Stoppard! C’est Magique”. A seguir, o autor, que autografa livro na próxima terça-feira no Carpe Diem da Asa Sul, reflete sobre a crítica literária, explicita diferenças entre poema e letra de música e arisca uma definição para o próprio fazer poético: “Minha poesia é também minha crítica ao mundo”.
1. O que difere a atividade crítica da criação literária? É possível coadunar ambas sem prejuízo?
A atividade crítica demonstra, em geral, uma atitude de dependência. Ou seja: trata-se de um discurso sobre uma obra ou sobre um problema. A obra literária é, portanto, uma plataforma, uma base conveniente sobre a qual surge a atividade crítica. Dito isso, tudo começa a se confundir: na obra ficcional de Jorge Luís Borges, por exemplo, há contos que são necessariamente discursos de um crítico literário – com belas passagens sobre a memória, sobre o que uma citação pode evocar. O mesmo acontece na poesia de João Cabral de Melo Neto, em que a crítica literária é por vezes a razão de ser do poema. É muito difícil localizar a fronteira entre criação e crítica, e existe certamente uma ironia tanto na busca dessa fronteira quanto na sua definição.
2. Antonio Cicero chama o seu trabalho de “crítica literária autêntica”. O que diferencia a sua visão da de outros críticos?
Não creio que Antonio Cicero tenha mencionado “crítica literária autêntica” para me diferenciar de outros críticos. Ele talvez tenha pretendido salientar o fato de que a minha crítica faz comparações, cita os textos literários e julga as obras. Como se sabe, a opinião é um artigo raro na vida cultural, em especial na literária. O que mais se percebe é o depoimento fraterno, a concessão a uma interminável mediocridade, o relativismo no lugar da escolha. É nesse sentido que entendo a crítica autêntica: quando a crítica toma posição.
3. Como funciona o “sistema endogâmico na produção e na divulgação da poesia” no Brasil? Existe paralelo com o que acontece em outros países?
O sistema endogâmico já fora denunciado por um bom poeta e crítico, Mario Faustino, ainda na década de 60. Como o mercado de poesia nunca aumenta (e pode até diminuir), é claro que o elogio mútuo e a cumplicidade fraterna aparecem como tábuas de salvação dos poetas que pretendem influenciar. O fenômeno é brasileiro na medida em que se aproxima dos nossos vícios de formação social, como o do homem cordial, do afilhado, do agregado etc. Mas, infelizmente, o problema não está restrito ao nosso país. Um crítico norte-americano, Dana Gioia, já escreveu sobre a irrelevância da poesia justamente ao comentar os maus hábitos de alguns poetas, que só se comunicam entre si e organizam revistas e antologias sob o critério do oportunismo grupal.
4. A crítica aberta e contundente, no Brasil, ainda é vista como ofensa pessoal?
Creio que sim, tal como ocorre na política: o debate de idéias é compreendido como ataque, quando o oponente exige respeito… Muitos dos poetas que consideram escrever uma “poesia do rigor” – algo como ser ortodoxo em relação a princípios artísticos – acabam sendo paternalistas e cordiais com os seus adeptos e seguidores. Imitam, assim, o que há de pior na ordem política, e negam a ideia mesma de arte e criação.
5. Que poetas ou quais livros, em sua opinião, são supervalorizados pela crítica nacional e quais não recebem (não receberam) a atenção devida?
É sempre fascinante rever o cânone e encontrar, por exemplo, Sosígenes Costa e Joaquim Cardozo, entre os mais modernos, que ainda precisam de maior atenção crítica. A minha crítica literária tem, de fato, buscado ponderar sobre poetas que ganham maior visibilidade – como, recentemente, Armando Freitas Filho e Haroldo de Campos -, e aqueles que ainda deverão alcançar maior espaço, como Sylvio Back, ótimo poeta erótico, e Luis Dolhnikoff. Creio que é a maior contribuição de um livro como Esta poesia e mais outra: provocar um contraste na recepção dos livros de todos esses poetas.
6. Por que a confusão entre “letra de música” e “poema”? É uma distorção exclusiva do Brasil? Quais as consequências dessa distorção?
Quando debatemos as identidades e as diferenças entre “letra de música” e “poema”, estamos também debatendo um complexo problema cultural do Brasil: por que um país reconhecidamente famoso por seu cancioneiro popular, sobretudo a partir da Bossa Nova, exibe uma literatura tão desconhecida e de tão pouca circulação? O baixo índice de leitura dos brasileiros talvez explique parte do problema: deixamos para a cultura oral, para a forma de articulação entre poema e melodia, as nossas criações mais populares. O passo seguinte me parece desastroso: em muitos livros escolares, os educadores pretendem apresentar compositores no mesmo nível de Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto quando tratam de literatura! Ninguém confunde, no Reino Unido, autores como Paul McCartney e Bob Dylan com a tradição literária de T.S. Eliot ou Philip Larkin. No Brasil, ignora-se de propósito a diferença absoluta entre a recepção de uma letra de canção, fenômeno do mercado, e do poema, que sempre exige um tempo diferente para seu consumo… Tudo relacionado ao pouco prestígio da palavra escrita entre nós…
7. Em meio ao cenário por você traçado, qual deve ser o papel da crítica literária? E a quem ela se destina?
A crítica literária precisa ser provocadora e debater a comparação entre autores e obras. Não pode ser, por isso mesmo, praticada apenas pelos amigos dos escritores e por quem prefere ser simpático em vez de opinar. Os poucos jornais que, no Brasil, ainda mantêm suplementos literários às vezes exageram na publicação de resenhas inócuas e descritivas sobre um autor. A meu ver, desrespeita-se o leitor quando um artigo não contém opinião ou um posicionamento crítico facilmente identificável. Mesmo quando se trata de um texto acadêmico não destinado ao jornal, o que mais interessa é a hipótese de interpretação e a análise.
8. O que o levou à análise aprofundada da letra de “Coração Materno”?
A canção de Vicente Celestino foi lançada em 1937 e, desde então, surpreende pelo tema: o matricídio. É uma canção dramática e kitsch, que Caetano Veloso regravou nos tempos do Tropicalismo para, justamente, demonstrar o que o seu movimento tinha deixado para trás. No entanto, a oposição entre o amor eterno da mãe e o amor egoísta da noiva me pareceu um tema transcendental da poesia. Fui buscar as fontes da canção e não deu outra: descobri que estava baseada numa lenda francesa medieval, que por sua vez influenciou vários poetas europeus, entre os quais um húngaro e um russo, cujos poemas traduzi no meu livro. Foi uma descoberta e tanto para mim, que agora tenho o prazer de dividir com meus leitores.
9. Chegou ou já passou da hora de se preocupar com o “leitor desamparado”, para citar uma expressão utilizada no trecho final do livro?
Quando menciono o “leitor desamparado”, quero fazer referência às diversas classificações da literatura: literatura gay, literatura feminina, literatura racial… Será mesmo possível que existam essas literaturas? Então quem cuidará do leitor, submetido a todas essas correntes sem sequer compreender a ideia mesma de literatura? No fundo, como sabemos, estamos à procura da beleza e da provocação estética diante de um quadro ou de uma ária de ópera. Não adianta compartimentar a arte segundo os preconceitos do dia, e deixar o espectador, o ouvinte ou o leitor desamparado diante da informação que não transmite uma emoção estética. A minha preocupação com o assunto continua, ainda mais agora, quando as linguagens eletrônicas tornam tudo mais rápido e menos reflexivo.
10. Como a sua própria poesia se insere no panorama contemporâneo nacional? O que o crítico Felipe Fortuna diz sobre ela?
Como já publiquei quatro livros de poemas, tenho condições de conhecer a minha poesia por meio da sua recepção crítica. Seguramente acredito que não é uma poesia do tipo conservador, embora tenha interesse em prolongar o diálogo com a tradição literária. Sinto falta de maior diálogo com os poetas da minha geração, talvez porque goste de ler cartas dos escritores que, ao menos no passado, expunham suas perplexidaes e suas escolhas artísticas. No fundo, sei que minha poesia é também a minha crítica ao mundo, a minha forma de resistir e de me humanizar cada vez mais.