Eu apanhava os livros de Chas Addams na biblioteca de meu pai e, em silêncio, acrescentava ao meu mundo outras possibilidades. Minha infância segura e sossegada era invadida com minha permissão por seus desenhos carregados de tons cinzentos e negros; eles me causaram estranheza justamente porque descobri o terror nas cenas domésticas. O meu lar não era mais o mesmo depois de folhear qualquer um daqueles álbuns de desenhos. Talvez seu humor não ameaçasse a ordem de minha família burguesa, mas não posso dizer o mesmo de uma insuportável presença misturada ao riso: a presença da morte. Chas Addams medita continuamente sobre a morte, que se torna uma afirmação e uma possibilidade diárias. Não se trata de uma morte inusitada, mas uma morte de sofisticado engenho intelectual. A fantasia existente nesse mundo paralelo me dominava: eu também me sentia capaz de engendrar planos e ardis terríveis, mantendo-os em segredo por toda a minha vida. Eu aprendia a destruir as aparências harmônicas da vida e começava a investigar uma lógica sombria que, desde então, se transferiu para o meu cotidiano. Essa descoberta oscilava entre a estabilidade e a iminência; tudo poderia ocorrer – essa era a minha única certeza. Chas Addams deslocou o terror da casa abandonada, dos lugares desertos em que se encontrava confinado e o transformou numa ocorrência normal e vulgar. Desse modo, encarado com maior naturalidade, o terror passou a ser não apenas mais envolvente e mais terrível – porém, encontrou uma dimensão quase insuportável: a de um terror possível. Seus desenhos muito sombreados e quase sempre pouco nítidos são o sintoma de um universo que recusa qualquer delineamento e são também o melhor artifício para produzir a possibilidade. A morte parece ser, enfim, algo de muito simples – mas para atingi-la é preciso astúcia e engenho.
Embora identificado com métodos delirantes, o humor de Chas Addams é extremamente lógico e intelectual. Não é jamais ambíguo, nem deixa uma situação suspensa para que o leitor a complete com o seu riso. Isso porque, reconheça-se, quase não se ri desse humor. Na minha infância, eu tinha fascínio pela presença cômica em momentos tão inesperados. Hoje reconheço nesse processo rigoroso um interessante mecanismo que faz com que várias ações se repitam, transformando algumas atitudes em variações em torno do mesmo tema. Em seus desenhos não há, como é comum no humor, as eternas brigas entre homens e mulheres que se casam; pelo contrário, Chas Addams radicaliza a clássica oposição humorística do homem e da mulher e apresenta situações em que uma das pessoas deseja a morte da outra – seja em pensamento, seja ao conceber complexas armadilhas. Em vez de tornar cômico o discurso da briga, é a palavra final (ou a eliminação do discurso) o seu interesse. Um homem estaciona seu trailer à beira de um precipício e pede gentilmente que sua mulher saia dali de dentro; um outro homem para o trailer justamente sobre uma linha férrea, e o está desengatando do seu carro, enquanto lá dentro sua mulher joga paciência inocentemente; uma mulher amarra o fio ligado ao para-raios no braço do marido que dorme na rede, enquanto os relâmpagos se aproximam; uma outra mulher, por sua vez, arma uma verdadeira bomba, astuciosamente colocada na lancheira de alguém; num outro instante, um homem que corta lenha tenta derrubar uma árvore que cairá justamente sobre uma rede na qual, dessa vez, sua mulher dorme; um homem, diante das ruínas do Coliseu, imagina a mulher que está ao seu lado perseguida pelos leões na arena; e, na saída de uma apresentação de Salomé, uma mulher imagina a cabeça de seu marido numa bandeja. Existem muitas outras cenas com precipícios, induções à morte, planos de assassinatos e formas bem menos convencionais de se eliminar alguém. Tudo a indicar que as relações entre marido e mulher são insuportáveis. Chas Addams interessa-se especialmente pelo momento extremo em que uma decisão surge ou é executada. O mundo burguês, calmo e equilibrado, é afetado por essas sombras que interrompem um piquenique ou a pose para uma fotografia de recordação. Nesses momentos bucólicos e apaziguados, a desordem explode num pensamento obsessivo ou num gesto brusco. A ordem é desmanchada, como se fosse a imagem de um rosto na superfície da água, agora agitada, quando uma nova ordem surge. Homens e mulheres tomam parte na batalha surda que só o casamento tornou possível: nada mais irônico do que a sentença “até que a morte os separe”.
As crianças no mundo de Chas Addams fazem também a afirmação da morte, introduzindo-a perversamente em suas brincadeiras, transformando-a numa possibilidade cotidiana. As crianças fazem experiências que assustam os adultos – nunca o contrário. O choque destes últimos, diante da aparição de cenas inusitadas, é sempre acompanhado de alguma culpa: a existência da guilhotina, a fórmula dos venenos, a cadeira elétrica, o emparedamento, os aparelhos de tortura, a fogueira para os hereges – tudo representa invenção dos adultos. O mundo se apresentou à criança dessa maneira, e ela o descobriu. Eis uma faceta terrível dos desenhos de Chas Addams, já que a descoberta nem sempre é causada pela cumplicidade. A transferência da dor, do castigo e do mal para o ambiente da infância também torna o mundo insuportável. Desse modo, é com grande rapidez que a criança se eleva a uma categoria mental de alguma sofisticação. Como afirmado, é uma divisa geral da obra desse humorista a de que a morte só é atingida com engenhosidade. O processo de matar alguém é extremamente intelectual, ainda que pautado em experiências anteriores e, por vezes, em monótonas variações – como são os casos dos precipícios e dos venenos. Não se trata de um mundo repleto de brigas, mas de um mundo com soluções terminais. Confinadas em um ambiente doméstico, porém, essas soluções representam escândalos bem-comportados. As donas de casa, como se estivessem no trivial cumprimento de seus deveres, cometem crimes; os casais agem como assassinos que se escondem por trás de máscaras de placidez. Essa espécie de terror caseiro dimensiona o espaço do lar com as conotações inusitadas da desarmonia, e revela um aspecto vertiginoso da vida conjugal. Ao mesmo tempo, tem-se a impressão de que Chas Addams posicionou o Mal em seu devido lugar.
Está claro que um dos procedimentos mais comuns desse humorista é o da desproporção – o que nunca deixou de ser uma das características gerais do humor. Em seus desenhos, é comum que a desproporção tome formas monstruosas. Se o piquenique de um casal pacífico é interrompido pela chegada de um enxame de formigas gigantescas – enquanto a mulher, sem vê-las, diz ao marido que a presença de formigas no campo é natural; se o vizinho de um outro casal pacífico corre em sua direção, alarmado pelos dinossauros que se aproximam das duas casas – enquanto a mulher comenta que aquele homem tentará pedir algum objeto emprestado -, Chas Addams deixa entrever nos gestos prosaicos o absurdamente gigantesco, o formidável mundo [1]. Embora inoportuno, o gigantismo não é metáfora de uma situação particular, nem pretende simbolizar formas poucos convencionais. Trata-se apenas de colocar cada ser diante de experiências banais e monstruosas (e assim existem pombais, ratoeiras, machados de lenhadores, bolas de golfe e sutiãs absolutamente descomunais). Em muitos casos, é preferível que o animal ou a pessoa não apareça com tamanha dimensão, mas sim o objeto relacionado a um deles. Trata-se tão-somente de causar estranheza, evidenciando “coisas” totalmente inúteis se não houvesse “algo” ou “alguém” que lhes desse utilidade. Pois quase todos os seus gigantes são apenas entrevistos – o que é bem mais engraçado. É com essa medida do absurdo físico que um modelo feminino posa para um escultor que, martelando no mármore as formas de um corpo em seu tamanho natural, precisa subir num andaime, enquanto as gigantescas peças femininas se amontoam num canto do estúdio; ou então, num momento de irresistível comicidade, os olhos desmesurados de uma mulher que procura, através da janela de um arranha-céu onde existe uma loja de roupas para mulheres altas, algum modelo de roupa que lhe sirva. Chas Addams, justamente porque recusa qualquer sentido mítico dessas grandezas, se apraz em fazer um humor fundado no grotesco, nas aberrações – porém, sem enveredar pelo sarcástico comentário aos defeitos físicos, especialidade, por exemplo, de Graham Wilson. É capaz até mesmo de revelar esquematismos ao conceber um modelo feminino que, dessa vez, é bastante útil a um miniaturista… Nesse sentido, não pode ser considerado um “humorista negro”, como Jaguar, Reiser, Siné ou Gross, porque a existência de tais anormalidades é tolerável. Não se percebem cegos, paralíticos, surdos ou mudos, nenhum estertor. Chas Addams é por demais alegórico – nada cínico. Não é um crítico.
Assim, quando uma senhora tricota num vagão de trem um pulôver com duas aberturas para as cabeças de um corpo, pode-se rir dessa “distração” ou da possível existência de uma pessoa com um par bem pensante; da mesma forma, quando é servido a uma família um porco de duas cabeças (e, claro, duas maçãs entre as fileiras de dentes), não existe perplexidade ou riso cruel: no caso, o possível sequer existe, tratando-se de um distanciamento que Chas Addams, tão mais perverso em outros momentos, sabe operar como ninguém. Pois muitas vezes ele transforma o inusitado em prática real. As pessoas que observam a velha senhora que tricota mantêm um inegável ar de espanto, em vez de simples curiosidade. É assim, estrategicamente, que Chas Addams informa o essencial. Não se trata de esquecimento: há realmente alguém no mundo com duas cabeças. A imobilidade dos personagens e suas expressões afetadas pela perplexidade produzem uma nova situação, sempre iminente: tudo poderá ocorrer, mas sempre de modo inusitado. O cuidado, no entanto, de não revelar alguém morto – não existe um só morto em seus desenhos – e em não maltratar as aberrações provoca por vezes uma óbvia ingenuidade. Os poucos que planejam suicidar-se não conseguem levar a termo o gesto final, ou então buscam soluções intelectuais, como a do homem cuja corda esteve amarrada ao ponteiro maior de um relógio da torre. Atenuando a morte, mas salientando tudo o que esteja relacionado a ela, Chas Addams inventa uma situação ideal para a cumplicidade de quem folheia seus desenhos, à maneira de um “manual de instruções” cujo resultado é a própria leitura.
Minha infância não escapou dessa fantasia de pensar o muito grande e o muito pequeno. Desde então, as possibilidades monstruosas e o sentido das deformações inscreveram-se na minha representação do mundo. Aceitar a disformidade e a deformação não é muito fácil para as crianças, principalmente em se tratando daquelas que freqüentaram imaculados maternais e pré-primários com tias e coelhinhos sorridentes. Aprendi que ambos os universos existiam, mas o de Chas Addams era, entre outros, mais estimulante. Quando me recordo do que se passou naqueles tempos, estou sempre me referindo a um álbum de desenhos da biblioteca de meu pai ou a músicas infantis também carregadas de armadilhas. Era, também, uma forma silenciosa e profunda de abalar a ordem familiar.
Chas Addams alerta que o mistério e o terror estão inseridos na vida cotidiana. O humorista desenha uma plateia de comportados espectadores de um planetário; um deles se transforma em lobisomem quando se projetam as fases da lua. Depois, acabado o espetáculo, todos se despedem cordialmente, como se nada tivesse ocorrido. Existir a possibilidade do como se era e é delicioso. Não podia mais recuar diante do efeito de tantas descobertas e invenções.
Certamente devo ter herdado a ideia de que as testemunhas do fantástico são poucas e solitárias. Esta é a conclusão a que chego atualmente, ao rever os desenhos de Chas Addams. O inusitado ocorre apenas para uma pessoa (o que alude às mitologias do eleito, do individualista e do gênio). Em alguns de seus desenhos, um grupo de pessoas participa de momentos corriqueiros, mas uma pessoa percebe algo que escapa à banalidade desses mesmos momentos. Não seria esta a melhor, persistente e romântica definição (às vezes tão válida) do instante poético? Parece-me cada vez mais evidente que o terror – e, por extensão, a vida – só é percebido na solidão; e o efeito dessa solidão é único, como sentido pela mulher que, em visita a uma catedral, presenciou sozinha o vôo de uma das górgonas de pedra. É quase insuportável a metáfora que Chas Addams concebe quando convida suas testemunhas solitárias – entre as quais se encontra o seu leitor – para a experiência do silêncio e da conivência.
Não sei bem se é exagero ver num dos melhores desenhos de Chas Addams o tema de uma produção de minha juvenilia, o conto “Os Espelhos Belgas”. Se assim for – mas o que ou quem poderá confirmar? -, trata-se de uma inspiração que só se realizou quase uma década depois. O desenho é um dos mais fantásticos, por tratar do tema do infinito: no salão de uma barbearia, um dos espelhos, como é comum, reflete a imagem do barbeiro e de seu cliente, indefinidamente. No entanto, uma das imagens do cliente é, enfim, a de um monstro – enquanto todas as demais permaneceram idênticas. É uma ideia terrível, sem dúvida, que envolve uma imagem oculta e realidades das quais não se pode fugir – pois, se está refletida, não é apenas aparência. O desconcertante surgimento dessa possibilidade talvez tenha permitido o tom trágico de meu conto, em que as pessoas se veem cada vez mais velhas nas sucessivas imagens, até o instante em que desaparecem, pois a partir de então o espelho refletia a morte. O sentido da aparição é muito peculiar nos desenhos de Chas Addams, e sempre me causou algum desconforto (do qual também achava graça).
Seu humor, que explora formas inusitadas, embora muitas vezes ingênuas, é capaz desses e de outros momentos terrivelmente lúcidos. Um vendedor de bonecos vodu, postado à entrada dos portões de algum estádio, faz sucesso ao explorar o ódio do outro. Dois homens, que vinham de lados opostos de um enorme deserto, arrastando-se quase sem forças, desviam-se um do outro assim que se encontram. Nenhuma palavra é trocada, nenhum gesto é percebido: a solidão é o único caminho. O humor que Chas Addams provoca, assim como certas sombras entrevistas em seus desenhos, é também inusitado. É quase, para se usar uma fórmula redundante, um humor pouco piedoso consigo mesmo – a exemplo daquela inexplicável Mona Lisa sentada no meio de uma plateia que ri escancaradamente. Não poderia ser de outro modo, afinal o seu é um humor que modelou a ambiguidade numa forma precisa, embora falsa, autenticamente falsa.
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* Versão reduzida deste ensaio foi publicada na Gazeta Mercantil, suplemento Fim de Semana, com título de “A Engenhosidade da Morte em Chas Addams”, 20.6.1997.
1. Ao escrever “formidável”, atenho-me ao sentido primeiro da palavra, o de “medonhamente grande”, “descomunal”, “colossal”, conforme registra o nosso dicionário mais popular, em que se evidencia a noção grotesca do gigantismo.