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Indo a Duas Festas

A comparação entre dois célebres contos brasileiros, “O Peru de Natal”, de Mário de Andrade, e “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, não sugere apenas um óbvio esforço didático. Ambos os contos tematizam os rituais das reuniões familiares, com tom moderado de humor e de crítica aos costumes; ambos revelam as dificuldades das relações entre parentes e o sentido mesmo da alegria e da felicidade que as datas festivas devem e podem provocar nos seus participantes. Efemérides são, nos dois contos, pontos nevrálgicos nos quais as relações humanas são examinadas e reveladas: como se a toda festa faltasse motivo para comemoração.

Em “O Peru de Natal”, assiste-se a uma festa bem realizada e com final feliz, após a superação do forte obstáculo simbolizado pela imagem do pai recentemente falecido. A reunião familiar acontece sob a mórbida evocação do chefe da casa, que persiste na memória de todos. Surpreende, no conto, a freqüência e a sofreguidão com que o narrador, Juca, que vem a ser um dos filhos, faz referência à idéia e ao sentimento de felicidade, mais exatamente da felicidade familiar, que ao final do conto se vê transformada em “uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar.”1 No âmbito familiar, o filho homem consegue a proeza de atenuar a “memória obstruente do morto” ao substituir o ambiente de luto pelo de festa, valendo-se do peru de Natal como objeto sedutor para alcançar aquele objetivo. De modo sutil, ainda que repleto de psicologismos e de simbolismos sensuais, Mário de Andrade apresenta a versão de uma festa que não serve apenas para comemorar o nascimento de Jesus – serve, bem mais, para apresentar uma idéia inesperada sobre o sentido da religião e da comunhão, que atinge as pessoas presentes à ceia. O patriarca da família, com seu exemplo de homem correto, porém incapaz da alegria, se transforma, enfim, em símbolo inócuo da bondade: “Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu.” Animal entregue ao sacrifício, o peru morto é declarado o vencedor do embate entre a “natureza cinzenta” do pai “desprovido de qualquer lirismo” e a intensa felicidade sentida por todos durante a comilança. E a vida, assim, supera a morte.

É de natureza muito diferente a festa apresentada em “Feliz Aniversário”, não bastasse a última frase do conto que retrata a comemoração da data natalícia de uma anciã: “A morte era o seu mistério.”2 Tudo faz crer que a palavra “feliz” é mesmo uma inversão irônica do que acontece com a aniversariante de 89 anos: sentada à mesa da sala horas antes da festa começar, ela parece indiferente a qualquer comemoração, a qualquer data. Não congrega a família, não demonstra emoção. Quase muda, ela é bem o resumo da falta de comunicação entre os demais familiares que compareceram. E o bolo, ali, em cima da mesa, seco e grande, não atrai nem seduz. Assim vai transcorrendo a festa que, como se lê, consegue terminar várias vezes, até terminar de fato, quando as pessoas se libertam daquele espaço de protocolo e opressão e “se encontraram na tranqüilidade fresca da rua”. A festa é o fracasso da comunhão, com seu início, seu meio e seu fim. É perceptível a senilidade da velha, que parece alheia a tudo, que diz frases e faz gestos com violência, e cospe no chão, agressiva. Ela não conversa e só tem, pelo que se sabe, pensamentos desabonadores sobre os membros da família, assim indicando o resquício de lucidez, que lança suspeita sobre os demais.

Existe um esquema lúdico, nos dois contos, que permite flagrar o estar dentro e o estar fora de cada festa. Em “O Peru de Natal”, tudo se passa dentro do lar, como se houvesse um círculo concêntrico a agrupar a família, a imagem do pai, a mãe, os três irmãos e a tia – ao longo de uma linha condutora que termina no animal morto sobre a mesa, “dominador, completamente vitorioso”. Durante a ceia, o estar dentro possui alta tensão emotiva, apenas liberada com a sublimação do pai morto, afinal convertido em santo e numa exterior e “inestorvável estrelinha do céu”, e com a namorada de Juca, uma tal de Rose, localizada em outro lugar da cidade, portanto fora de casa, que “prometera me esperar com uma champanha”. O conto termina com a saída, com a ansiosa expectativa do filho de estar fora, e assim buscar mais felicidade, além daquela que já instaurou dentro da sua casa com a decisão de comemorar festivamente, sem remorsos e culpas, o “primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai”.

O que acontece em “Feliz Aniversário”, por sua vez, segue uma linha condutora que parte do estar fora, no momento inicial em que “a família foi pouco a pouco chegando” de diferentes bairros do Rio de Janeiro (a nora de Olaria, note-se, aproveitando-se da ida à casa da anciã para passear por Copacabana), chega ao incômodo estar dentro da festa e, por fim, termina no estar fora, na rua, quando as pessoas se despedem e se vêem livres da tensão que os envolvia na sala do apartamento. Ao contrário do que acontece em “O Peru de Natal”, os membros da família de “Feliz Aniversário” não sofrem qualquer alteração significativa, não apresentam modificação perceptível no comportamento e nos destinos que lhes cabem: estão dentro e estão fora da festa com os mesmos complexos, ressentimentos e mesquinharias que os caracterizam; são irrelevantes em si e, ao mesmo tempo, muito pertinentes para cada um. Fracos, hesitantes, indecisos, ninguém em “Feliz Aniversário” consegue sequer substituir o filho mais velho da anciã, já morto, que costumava fazer os discursos de aniversário; ninguém ali supera os mortos, e muito menos a aniversariante impávida, retrato estático de uma futura morte, que passivamente os reúne ali, para nada. Quanta diferença daquele filho homem de “O Peru de Natal”, que assume haver gostado “apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor”, e assim consegue eliminar o luto e provocar a felicidade, confraternizando, enlaçando os membros da família com amor. Em “Feliz Aniversário”, a mulher de 89 anos é quem, no seu silêncio, sente desprezo pela “vida que falhava” e mal entende como “tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos”. Sem carinho e sem admiração, tal como o filho homem em relação ao pai morto, a anciã tem seu sentimento implacavelmente revelado pelo narrador, como num verso dramático: “o rancor roncava no seu peito vazio”.

Sutilmente, a intercalação entre o estar dentro e o estar fora se expande a outras dimensões, não apenas àquelas que se limitam aos espaços que contêm as pessoas. Exempo disso é a decisão, em “O Peru de Natal”, de restringir a ceia àqueles que moram na casa – o que inclui “minha tia solteirona e santa, que morava conosco.” Juca aprova e confirma a restrição, enfim consensual, o que afasta o perigo de o grupo familiar receber, nas suas palavras, “toda essa parentada do diabo…” Porém, uma vez delimitado o território e os seus ocupantes, abre-se a fresta para a controlada intrusão – pois vem de fora, mais precisamente da “casa da Rose”, a magnífica receita para preparar o peru. Pode-se mesmo admitir que é o elemento externo à ordem e à rotina da comemoração que produz a modificação de espírito dentro casa. Uma espécie de felicidade clandestina, se for necessário usar uma expressão concebida pela outra escritora, não por Mário de Andrade.

Já no conto de Clarice Lispector, acontece uma festa oferecida pela anciã, que está dentro, mas que será avaliada e julgada pela parentada, que está fora da casa. Essa assimetria provoca a incomunicabilidade, o completo desencontro de vontades, e transforma os momentos festivos em passagens de suplício: a nora de Olaria desafia, com o olhar, a nora de Ipanema; os presentes oferecidos são, todos eles, inúteis para a aniversariante; por fim, ante o silêncio da anciã, todos “continuaram a fazer a festa sozinhos”. O estar dentro e o estar fora se intensificam, aqui, de maneira muito diferente da que se viu em “O Peru de Natal”: os que chegaram da rua não contribuíram “com uma caixa de fósforo sequer para a comida da festa”, e quem estava dentro da casa se lembrou que “nenhuma cunhada ajudou propriamente.” Assim estão organizados os espaços em “Feliz Aniversário”, nos quais devem ser inseridos personagens que ficam “de costas para a aniversariante”, um filho que não comparece pois “não queria ver os irmãos”, uma mulher emudecida e, maior de todas, a aniversariante como que paralítica. Os dois contos, enfim, valem-se muito dessa estrutura de regulagens, como se houvesse um sistema de válvulas para controlar o fluxo de quem sai e de quem entra, da influência que vem de fora e da que vem de dentro, e exploram os efeitos profundos que a alternância provoca no ritual das reuniões.

Também é perceptível a importância da economia na relação entre os personagens – e aqui deve ser lembrado a etimologia grega oikonomikós, manutenção da casa habitada. A economia é relevante em ambos os contos: um obstáculo a ser superado, no de Mário de Andrade; um tema de permanente conflito, no de Clarice Lispector. A família de “O Peru de Natal” não conhecera “graves dificuldades econômicas”, mas tampouco fora acostumada ao “gosto pelas felicidades materiais”. Não havia, graças ao pai, desperdício ou luxo. E é por isso que Juca reclama, ao pensar sobre o passado, do costume, na família, de organizar uma “ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai.” O ritmo de contenção e a necessidade de poupar se irradiaram nos mínimos gestos que poderiam, por exemplo, incrementar o consumo. É o que acontece quando a mãe vai fatiar o peru e, em vez de cortar um pedaço inteiro, se limita a um dos lados, “não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.” É importante observar que a imagem do pai também está associada à de uma severa autoridade econômica, que só começa a ser atenuada à medida que Juca convence a família da necessidade de incrementar o gasto e a felicidade. Há no filho não uma atitude econômica, mas ecumênica (oikoumenikós), na qual a mesma raiz grega quer significar a harmonia da casa e a convivência mantidas por alguma ordem – no caso, uma nova ordem.

A preocupação com o econômico é marcante em “Feliz Aniversário”, conto em que dificilmente se encontra a dimensão ecumênica: ao receber os presentes (houve quem nada tivesse trazido para a aniversariante), a dona da casa percebeu nada haver que “pudesse aproveitar para si mesma ou para os seus filhos, (…) constituindo assim uma economia”; a mesma dona da casa, mais adiante, mostrou-se angustiada ao suspeitar que os convidados estariam pensando que ela fizera “economia de velas” sobre o bolo de aniversário. No seu discurso introspectivo, a anciã percebeu que nenhuma das noras usava brincos de ouro; e interpretou assim a frugalidade do hábito de combinar vestido preto com um simples colar de pérolas: “não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia.” Por sua vez, alheios à festa, dois parentes começavam a conversar até que um deles, “com falsa seriedade”, interrompia: “Não senhor! (…) hoje não se fala em negócios!” Em síntese, há diferentes ênfases no econômico e no ecumênico nos dois contos, cada um desses termos sendo a negação do outro.

Existe mais a observar, no entanto, no tópico relativo às ênfases percebidas nos dois contos. Parece evidente que a aniversariante, apesar de pouco falar, de estar resignada à sua posição de silêncio à mesa, é o principal personagem do conto de Clarice Lispector. Mas, em “O Peru de Natal”, e apesar da ênfase do título, caberia perguntar se o principal Juca, ou o pai morto, ou mesmo a ave servida. Há um drama implícito naquele conto, que reflete uma luta sutil dos três pela ocupação do espaço, de novo pelo estar dentro e pelo estar fora da festa. Ao final, existe mesmo uma rivalidade algo cômica entre o pai morto e o peru, sendo que este último conta com o apoio decidido do filho homem, e sai afinal vitorioso. Não é arriscado afirmar, acompanhando o título, que o peru de Natal é, de fato, o protagonista do conto, caso se considere Juca um consistente coadjuvante de toda a ação. Nos dois contos, a ênfase colocada nos personagens principais se manifesta, em algumas passagens, por um processo de intensificação que pode atingir até mesmo a dimensão física: em outras palavras, o uso de uma chave do tamanho que é tão comum em algumas sátiras e caricaturas. Em “O Peru de Natal”, o embate simbólico da ave com o pai morto tende à variação de magnitude física e espiritual: num instante, “a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora”; em outro, “a imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha do céu.” Mais complexa psicologicamente, a imagem da velha senhora, em “Feliz Aniversário”, passa por transformações semelhantes, sempre a salientar dimensões que não são meramente físicas. Quando ela, ao aproximar a faca do bolo, “deu a primeira talhada com punho de assassina”, ainda não se notava mudança significativa de tamanho, mas sim de força. Lentamente, porém, vai ocorrendo a mutação significativa da grandeza da sua imagem, centro das atenções: Clarice Lispector conclui, com o uso de uma palavra com maiúscula, que “Ela era a mãe de todos”. Antes, já havia escrito: “E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta”. Ao longo do conto, a imagem da anciã alterna momentos de total paralisia com momentos de explosões verbais, gestos decididos e violentos, e aquela intangível lucidez que se mistura, miseravelmente, aos instantes da senilidade que avança. A escritora está sensível à alternação, e indica, em mais três passagens, as mutações psicológicas de tamanho: “a aniversariante era apenas o que parecia ser”; “Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena”; “estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma.”

A freqüente mutação de tamanhos não oculta, porém, que o grande tema comum que conforma os dois contos é o da morte. Em “O Peru do Natal”, a morte é uma evidência, jamais sinistra, ao perpetuar a imagem do pai até o final, quando se vê sobrebujada pela felicidade de todos. Mário de Andrade expõe, notavelmente, as contradições implícitas na festa e no luto, na presença e na ausência de alguém, na alegria e no choro, e na metáfora alimentar que promove o “grande amor familiar” e induz à harmonia e à aceitação da morte. Naquela festa, o morto estava presente – e somente aos poucos, com a assimilação da comida, foi possível atenuá-lo até que adquirisse uma dimensão confortável para o convívio. Operou-se, assim, uma substituição, ou melhor, um deslocamento do morto, tal como a decisão de afastar os sofás, para que o chão da sala servisse para a dança e para a diversão. Já em “Feliz Aniversário”, a anciã encarna a pessoa “obstruente” – pedindo-se emprestada a palavra utilizada por Mário de Andrade ao escrever sobre o pai morto do seu conto. Aos 89 anos, dona Anita revela-se uma antecipação da morte, que marca, no calendário dos parentes, uma incômoda evolução: “Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda.” Clarice Lispector, à maneira de Mário de Andrade, também está atenta aos pares antitéticos que se apresentam durante a festa de aniversário, com os quais vai tramando a rede de incomunicabilidade que envolve a todos. É assim, simbolicamente, que “Escolheram o bisneto menor” para soprar a vela do bolo grande, imagem emocional do ser mais novo da família que apaga a chama em homenagem ao mais velho. Esse bisneto consegue, “com um único sopro” e “potência inesperada”, realizar a sua tarefa. É um momento de força vital que se manifesta, ao qual a anciã só esporadicamente saberá corresponder: em vez do sopro do bisneto, ela tem “punho de assassina” ao cortar o bolo com força, segundo um simbolismo que opõe aquele sopro vital ao fatídico da faca; é ela também que, “Incoercível, (…) com força insuspeita cuspiu no chão”, em protesto contra a família que parecia haver traído a sua vitalidade. Ela havia superado, em vida, o seu filho mais velho, Jonga, que costumava fazer os discursos festivos, que era respeitado pela mãe: “E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros.”

A morte permeia “Feliz Aniversário”, atua como uma infiltração lenta, mas intensa, na história. Ao se despedirem, já na rua, os convidados reconhecem que nada escapava àquela monstruosa presença (“Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto”), que tocava em tudo, em todos. Em duas passagens do conto, como se estivessem abertos dois intervalos, a nora Cordélia reflete, de modo súbito, sobre a imagem da anciã, buscando ali resposta para um segredo que tinha. Tudo o que dona Anita lhe dizia, num só gesto paralisado, resumia-se às frases: “É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.” Estarrecida com a verdade, Cordélia ainda tenta vislumbrar outras mensagens que a anciã estaria transmitindo, mas esta já voltara a ser apenas “uma velha à cabeceira da mesa.” Cordélia deixa a cena como um leitor que, também de relance, participa de duas festas, com duas mensagens diferentes, talvez antagônicas. O leitor não sabe em qual delas será feliz, mas está presente e participa, mesclando-se também ao entra e sai, à vida e à morte que sempre têm o que comemorar.

Brasília, maio de 2001.

1 Mário de Andrade, “O Peru de Natal”, in Contos novos (São Paulo: Livraria Martins Editora, 1978, 8a edição), p.102. Todas as citações do conto provêm desta edição.

2 Clarice Lispector, “Feliz Aniversário”, in Laços de família (Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, 10a edição), p.75. Todas as citações do conto provêm desta edição.

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