A poesia dita atemporal e inefável revela uma intenção mal definida – mas sempre relacionada à proposta de perpetuar certa dicção, certo logos pertencente ao conservadorismo literário. Desde seu primeiro livro, essa é a intenção de Ivan Junqueira – e por isso mesmo ele ilustra um dos projetos mais classicizantes da poesia brasileira. Desde Os mortos (1964) sua poesia concentrou-se num engajamento retrospectivo, ou seja, num respeito formal e numa devoção exacerbada à tradição elegíaca e filosófica que não constituiu, em momento algum, vinculação aos temas do “tempo presente”. Naquele livro, Ivan Junqueira permitira poemas mal compostos como “Tristeza” e “Flor Amarela”, mas, por outro lado, tanto no “Soneto ao Unicórnio” quanto em outro soneto, “O Polvo”, indicava a raiz primordial de sua poesia: o decassílabo de sabor camoniano e o domínio rigoroso dos metros curtos. Como escreveu nos versos de “Signo & Esfinge”,
Toda esfinge exibe um signo
visível do seu enigma
Ivan Junqueira conforma sua poesia a um esforço arcaico, e mesmo arqueológico, que determina não apenas uma opção em poesia, mas uma filiação estética cujos reflexos se encontram ainda em suas traduções e em seu jornalismo literário.
As Três meditações na corda lírica (1977) confirmam amplamente tais observações – e acentuam outros hábitos seculares de sua poesia. Primeiramente, o labor e o artesanato de seu verso, constantes em sua obra reduzida a pouco mais de oitenta poemas em vinte anos de publicação. Mais adiante, o equívoco central de sua poesia, que consiste em acreditar que a simples adesão a uma linguagem tradicional pode instaurar uma atitude filosófica. A vocação elegíaca de Ivan Junqueira, assim, não lhe permitiu o envolvimento com os temas existentes nos seus prediletos T.S. Eliot e R.M. Rilke, por exemplo. Desse modo, uma das obsessões mais visíveis em sua poesia é a de que, conforme celebrizado nos Four quartets (1944), na sua tradução: “O tempo passado e o tempo presente / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro”, que ele remodela, nas Três meditações na corda lírica, para
o intemporal princípio e fim de tudo
(“Quase uma Sonata”)
e, no recente O grifo,
sobre minha alma onde o princípio e o fim
se beijam como lábios entreabertos.
(“Ó Doce Mão”)
Isso representa bem mais um topos poético do que a convicção de um questionamento.
O grifo, na verdade, apresenta como princípio e fim o passado literário. Ivan Junqueira, esse saudoso de Boileau, não encarna apenas o poeta de “arcaicas escrituras”, mas o crítico de gosto igualmente tradicional, o que também assinala outro princípio e fim de sua obra. A publicação de seus ensaios e resenhas em O encantador de serpentes (1987), por isso, mostra-se eficaz ao revelar não apenas qualidades intrínsecas à sua poesia, mas também à sua concepção literária. Confessa o poeta em O grifo:
É sobre ossos e remorsos
que trabalho.
É esse o modo poético de referir-se à técnica do palimpsesto que tanto o seduz e que o faz transitar sobre o texto de poetas consagrados, a exemplo de certo Olavo Bilac (que é, a um tempo, esplendor e sepultura) em quem, para espanto geral, assinala a existência de um versemaker. Contudo, a “vocação liliputiana” de Ivan Junqueira, confessada por ele mesmo diante da tarefa de negar um Modernismo de “teses nem sempre lúcidas”, [2] nega não somente a possibilidade de uma criação original, mas compromete sua poesia enquanto “fenômeno de cultura”. Sim, porque o seu neoparnasianismo forja apenas aquela “poesia rasa” em que o ensaísta assinalou a falta de reflexão crítica. A sua intertextualidade, além disso, transborda do papel. A exemplo do que ocorreu em A rainha arcaica (1979), nesse recente livro escreveu os “Cinco Movimentos”, atrelado à dicção camoniana sem a qual Ivan Junqueira não compreende o sistema linguístico brasileiro, um “Hino à Noite”, de extração romântica, e “Penélope: Cinco Fragmentos”, inspirado em passagens da Odisseia. De fato, “ao som arcaico dos órficos violinos”, a sua poesia se afasta cada vez mais da empatia contemporânea e busca eleger a tradição como perpetuidade.
Por isso, à maneira de Da Costa e Silva em “Canção da Morte” (“Tenho uma noiva: é Dona Morte”), ele escreve, todo simbolista:
A morte, essa abadessa
que vela desde o berço.
o que é, por sua vez, uma personificação comum à poesia da Idade Média, conforme anotou Wolfgang Kayser em O grotesco (1957). Esse anacronismo repercute intensamente em sua concepção de literatura. Como anotou num ensaio dedicado a Abgar Renault (poeta bissexto que, quinhentista por excelência, poderia constar de sua confraria, da qual ainda fazem parte Dante Milano e Henriqueta Lisboa), considera a literatura “via de ascese” própria ao “recolhimento interior”. A classificação de ascetismo expressivo, emprestada àquela poesia, pode ser igualmente emprestada à sua. Austera e coesa, é nela, por exemplo, que o assinalado exercício com “a lúgubre penumbra da vogal u” se repete no soneto IV dos “Cinco Movimentos”:
Eu te amo tanto que esse amor assume
ambíguas formas de ancestrais criaturas.
Sua atenção, entretanto, não o fez evitar versos cambaleantes como “A sensação oca de que tudo acabou” e “a lágrima, a doce lágrima impossível…”, de reticências dolorosas… Elas se repetem com a mesma doçura em “A Doce Mão…” e ainda em “De Onde Me Vem, Amor…”, os momentos mais desleixados de O grifo – livro de um poeta que sabe ser melhor em assuntos graves como a morte do que na gravidade do amor. Lamentável, mesmo, é o trecho do mau poema circunstancial “Você”, em que escreve:
Sob o verde pinheirinho
onde mil luzes cintilam,
vez por outra você brilha
mais até que o sol a pino.
A faceta mais estranha em sua poesia, entretanto, acha-se engastada naquela concepção de perpetuidade literária – fazendo com que a sua criação assimile influências penumbristas, aliadas à meditação sombria, que descobrem no domínio clássico do verso um sintoma significativo da morbidez. Num artigo intitulado “Intertextualismo e Poesia Contemporânea”, de O encantador de serpentes, Ivan Junqueira cita, uma vez mais, T.S. Eliot, que com o verso “These fragments I have shored against my ruins” (“Com esses fragmentos tenho escorado minhas ruínas”) sugere um entendimento ainda mais radical de sua poesia. Em O grifo, animal que simboliza a morte, foi possível transformar todas as ruínas em palavras. Mas o resultado ainda é terrível, uma criação tão inesperada e obscura quanto a morte, como se lê em “Variações Sobre o Desejo”:
branco, o papel onde as letras
põem o luto que há no texto.
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[1] Suplemento Letras & Artes, Jornal de Letras, outubro de 1987.
[2] “Bilac: Versemaker”, in O encantador de serpentes (Rio de Janeiro: Alhambra, 1987), p. 61-2.