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Matéria de Antonio Gonçalves Filho

Época
No 241, 30 de dezembro de 2002

O TERREMOTO CRÍTICO
Felipe Fortuna é diplomata, mas não quer saber de boas maneiras quando o assunto é má poesia

Antonio Gonçalves Filho

Um crítico poeta ou um poeta crítico? O diplomata Felipe Fortuna não incomoda apenas por exercer duas atividades consideradas contraditórias. Prestes a completar 40 anos, Fortuna tem acumulado desafetos nos quatro cantos do país. Ex-professor visitante do King´s College, em Londres, o escritor produz textos para a grande imprensa. Foi num deles, sobre Adélia Prado, que recomendou a supressão de poemas num dos livros da escritora. Humildemente, ela os cortou de uma antologia, admitindo, numa entrevista, que foi “muito doloroso” aceitar a sugestão. Mesmo assim, considerou-a “valiosíssima”. Lástima que outros autores não sejam tão compreensivos.

Com A Próxima Leitura, fica mais fácil entender as razões da resistência de tais escritores ao crítico. Autor do elogiado livro de poemas Estante (1997), Fortuna disparou contra o engajado poeta Thiago de Mello – que costuma rimar “galardão” com “coração” – e quase foi “fuzilado” por seus simpatizantes políticos. Fortuna recuou mais no tempo e fez uma análise detalhada dos felipepoemas do simbolista Cruz e Souza (1861-1898). Tão detalhada que captou em seu discurso sinais de um insuspeitado antissemitismo. Essa surpreendente revelação vem acompanhada de uma advertência: o ódio de Cruz e Souza aos judeus era muito mais uma imitação literária de escritores franceses do período Dreyfuss, no final do século XIX, que um programa ideológico de contestação. Perdido entre o mundo real e imaginário, como todo simbolista, o “Dante negro” sucumbiu ao delírio, renegou a cor de sua pele e desconsiderou as consequências do antissemitismo.

Em A Próxima Leitura, a crítica não se restringe à poesia. A prosa de escritores brasileiros de diferentes períodos é analisada segundo a predominância do lugar-comum que persegue tanto os folhetins indigenistas de José de Alencar como os contos de Dalton Trevisan. O autor traça uma interessante correspondência entre a tragédia miniaturizada de Nelson Rodrigues e os casais anônimos de Trevisan, protagonistas de um drama existencial que “aboliu a História e a política”. O que, no entanto, poderia parecer uma crítica é um elogio a Trevisan, por perseguir na literatura a “grandeza matemática do mínimo múltiplo comum”.

O ensaísta também compara dois outros brasileiros distantes um do outro, Mário de Andrade e Clarice Lispector, analisando contos que descrevem uma comemoração festiva num meio em que a morte é companheira inseparável dos convivas. Ela marca presença igualmente na análise da última fase de Drummond. Fortuna fala da anulação do corpo em seus derradeiros poemas, carregados de um trágico sentimento de finitude e ausência de sentido. E evita a armadilha de buscar na vida pessoal do poeta mineiro explicações para seu pessimismo, criticando essa atitude em seu biógrafo, o jornalista José Maria Cançado. Nessa luta corporal sobram alguns sopapos para outros ensaístas, como Heloísa Buarque de Holanda, a quem nega um papel relevante na crítica poética. Fortuna veio mesmo para desafiar o coro dos contentes. E cantar sozinho, provocando o mundo literário com sua incômoda independência.

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