Existe uma estética da televisão vinculada, em geral, à reorganização fraudulenta do espaço e do tempo. Muitos estudiosos de comunicação dedicam-se à análise da informação perdida e da política do desaparecimento de imagens e sons. Atrelada à publicidade, a televisão cria mundos virtuais que não se abrem ao controle democrático da sociedade.
Se existe mesmo uma arte da televisão é porque existe uma arte da mentira. Nenhuma outra forma de arte, em que pesem as contínuas discussões sobre representação, metáfora ou mimese, se relaciona tão profundamente à falsidade da informação e à deturpação do real. Seria apenas curioso conviver com um meio de comunicação vinculado à reorganização fraudulenta do espaço e do tempo se este meio não representasse, em síntese, o poder. Alguns estudos, como o recente The age of missing information (1993), de Bill McKibben, examinam de que maneira os acontecimentos mundiais têm sido difundidos pelas centenas de canais americanos em um único dia. A conclusão é a de que imagens e textos poucas vezes conseguem ampliar a percepção que se pode ter, por exemplo, de um conflito: em vez de salientar o aspecto racista de um ato de violência qualquer, a televisão emite apenas a imagem da violência. Em síntese, a informação desaparece para dar lugar ao ambiente, ao território da imagem e do som.
Ao comentar as estratégias de guerra em seu livro L’Horizon négatif (1984), Paul Virilio analisa “a estética do desaparecimento”, que consiste na dissimulação do corpo do combatente, tornando-o camuflado ou invisível, com a qual é possível surpreender o inimigo. Tal estética logo se converte na “política do desaparecimento” em que o Estado, valendo-se seja das cassações, das perseguições ou mesmo do extermínio físico, elimina a noção de cidadania dos que a ele se opõem, por serem cidadãos. Se “o invisível é chamado a serviço do Estado” [1] na guerra, por que não o seria cotidianamente, como força de controle social?
No caso americano, os canais de televisão se contam às centenas. Porém, no que diz respeito à televisão no Brasil, vive-se a intensa e plena monocultura. A Rede Globo lidera em praticamente todos os horários – e cabe às demais redes de televisão lutarem pela vice-liderança, por meio de estratégias e anúncios que literalmente elegem a segunda posição como lugar de honra. Quarto canal mundial de televisão, num país com 29 milhões de aparelhos de televisão em 1992, a Rede Globo se dirige a noventa milhões de telespectadores. O apresentador Clodovil chama a Rede Globo de “a poderosa”; Hebe Camargo muitas vezes se refere à “outra”; e alguns entrevistados do programa do Jô Soares perguntam-lhe se podem dizer o nome da emissora em que fazem novelas, como se fosse realmente possível ficar famoso nas novelas de outras emissoras. O então candidato presidencial Fernando Collor de Mello recebeu a ajuda teledivina de um trabalho de propaganda e editoria que, sem exagero, contribuiu para a sua vitória. Lula, durante o processo do impeachment do ex-adversário, teve um encontro com Roberto Marinho no qual o empresário reconheceu a sua participação no episódio. Tão escandaloso quanto um sistema eleitoral corrupto é um sistema comunicativo antidemocrático. Fará parte de uma atitude política e cívica, tal como a dos ecologistas, debater o controle tão perverso da informação e da invisibilidade.
O fato é que, no reino da despolitização opinativa, a televisão cada vez mais se aproxima da dimensão da realidade virtual. As experiências com hiper-realidade, que permitem o acesso e a interferência do usuário de computador a um ambiente sintético, digital e tridimensional, poderão aliar-se em perfeita harmonia com a necessidade que tem a televisão de converter a realidade do mundo físico na realidade aparente. Benjamin Wooley, em Virtual worlds (1992), e Howard Rheingold, em Virtual realities (1992), discutem a nova possibilidade de criar e modificar realidades, provando-as, habitando-as e confrontando-as antes mesmo de que sejam constituídas. Um ainda tímido exemplo foi visto por milhões de telespectadores durante os bombardeios do Iraque por aviões americanos: as imagens tomadas de dentro dos aviões e até mesmo no trajeto dos mísseis conseguiram deslocar a informação dramática de uma guerra para um espetáculo high-tech de proeza.
São esses os aspectos que deverão agravar-se com o passar dos anos e a transformação das comunicações audiovisuais. Para François Brune, em artigo publicado no Le monde diplomatique, a submissão aos acontecimentos presentes (que fazem o telespectador vivenciar apenas as novidades do dia ou da semana), a perda da posse do real e a ideologia do espetáculo são os três “efeitos nefastos” que os sistemas televisivos impõem à sua assistência [2]. Pode-se imaginar, ainda, que sobre todos os efeitos mencionados paire a gradual uniformização informativa, que tende a transformar a notícia num elemento oriundo de um “Estado” totalitário e universal. Se assim for, será imprescindível reavaliar a função que os canais a cabo e algum outro gênero de emissão/recepção segmentada poderão exercer contra o que representa a maior força da cultura de massa, ou seja, a anulação da divergência ou da singularidade.
Nesse universo virtual, será bem mais marcante a presença da publicidade. Se a televisão propaga a mentira, é a publicidade que lhe dá sustentação econômica e artística. Paradoxalmente, embora as sociedades democráticas se aperfeiçoem e se fortaleçam, raramente a influência da publicidade é debatida com seriedade. Nem a imprensa falada e escrita, que dela depende, nem os partidos políticos dão relevo ao tema. E, contudo, como bem observou Gillo Dorfles, em L’Intervallo perduto (1980), a publicidade literalmente invadiu os interstícios da programação televisiva, preenchendo, com sua aparição, as pausas e os intervalos. A proclamada criatividade publicitária deve sempre estar voltada para os estímulos que podem ser transmitidos durante cerca de trinta segundos. Numa sociedade democratizada, controlar a televisão, a publicidade e os seus mundos virtuais deveria ser bem mais do que fundar um instituto de ética: deveria ser preocupar-se com uma sociedade que não deixará mais de conviver com os meios de comunicação, mas que precisará também enfrentá-los.
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*. Folha de São Paulo, suplemento Mais!, 06.06.1993, com o título “Arte da TV e da Mentira”
1. “Esthétique de la Disparition”, in L’Horizon négatif (Paris: Éditions Galilée, 1984), p.101
2. “Néfastes Effets de l’Idéologie Politico-Médiatique”, Le Monde Diplomatique, mai 1993, p.4-5