Não me chamem pelo meu nome:
eu não atenderei. Meu braço
não alcança, sequer pertence
à cãibra ou carrega buquês.
Uma perna arqueou-se, lúcida;
a outra recebeu a sombra
que depois recobriu o corpo.
Minha cabeça permanece
ainda o objeto imperfeito
que se abria e provava, em tosca
posição. Mas agora não
doo, nem respiro, nem escuto,
ainda quando abrem à força
os meus olhos lisos de vidro.
Tentam saber se tenho raiva,
e por isso roçam, apalpam?
Mas eu já saí. Por escrito
expliquei por que não quis mais.
A mão descansa em mim, igual
à mosca que vai retornar.
E assim fiquei, em reportagem.
E assim também paralisei
o que de mim mais gostariam
de ver em bruta sucessão:
a mão que vai com pouca tinta
escrevendo as palavras mais
simples encontradas no dia;
o susto em tudo a despertar
o olhar que nunca se equilibra
sob as pálpebras, entretido
em escandir a luz que passa
e se projeta à outra esquina.
Vim, vi, e agora terminei:
supremo e todo no comando,
constituí a supressão.
Mandei nutrir minha saúde
com o que sobrava demais:
o corpo na sua estatura
igual ao tamanho da mesa.
Logo escolhi a posição:
um molde fóssil que deixei
à extinção, indiferente
aos vincos puros do lençol.
Ali deixei ou me atirei
sem lembrar de Sandra e de Márcia,
não de Regina, não de Sônia,
como se a porta permitisse
que passassem, e não me vissem.
(Mas eu fiquei atento: o rastro
que me leva aonde deitei
também serve para fugir,
e foi a fuga o que eu segui).
Muitos somos os suicidas
a desejar a brevidade:
mas falo por mim, não por quem
quis imitar mortes alheias.
E é por isso que hoje, ao abrir
esse portão de ferro-gusa,
deixei tortos, de lado, os passos
que me trouxeram para dentro.
E nem acordei nem perdi:
gravei um retorno melhor
no chão, para servir de guia.
O dia arqueja frente ao outro.
O dia está preso ao cordão
que então seguia até saber
onde o não se dobrava, o não
se esticava, o não se torcia
e devorava toda a sombra.
Agora me chama a razão:
vou resvalando à marginal
de tudo o que aprendi, sem dor
(como espero) e sem parecer
hesitante ao sentir o sol:
pois eu nasci para sair.
E não quero seguir a esmo
o fio que se produz sem cortes
sobre a rua longa onde piso.
Não sigo.
Prefiro que tudo
me deixe sem chão e sem curvas
até que um cansaço sem luzes
traduza meu corpo e o cubra
com uma palavra estrangeira.
De que maneira apressaria
o que outros poetas fizeram?
Insisto: poetas caídos,
horizontais ou verticais,
que acordam e dormem depois
de entrarem no mesmo automóvel.
A víbora branca se esconde
no grande jasmim que plantou
Alfonsina Storni. As mãos
que ali colheram já se foram.
Jamais serviram para o mar
que transportou à terra, em vão,
Kostas Karyotakis. Ondas
roeram seus braços e suas
pernas de náufrago.
Mas só
um disparo acertou o rumo,
o caminho mais perto: o sal,
a febre, o respirar mais tenso,
como fez Cesare Pavese
em seu vórtice, e na mudez
de um verso final, decassílabo.
Um corpo, no entanto, desceu
ao fundo – todo o corpo um modo,
em pausa, de silêncio e água.
E embora nem mesmo nadasse,
tinha a visão de outros poemas
que Hart Crane deixou de escrever.
Longe do mar, os pés no chão
e as duas mãos dentro da guerra,
Georg Trakl detonou a bala
violenta em pânico e pólvora,
mas o branco
dos olhos só
lhe surgiu
contra o branco pó
que o enterrou durante o inverno.
(Lá fora faz medo: mas dentro
de casa, depois de seladas
todas as portas e janelas
e servidos o pão e o leite,
a cabeça de Sylvia Plath
mastiga o gás
engole a luz
da manhã mais simples do mundo).
Consulto com pressa, em voltagem
dupla, meu relógio que conta
as pedras e os redemoinhos
do rio que corre em Paul Celan.
Tudo passou: anéis e dedos,
flores e vasos, prazer e
zéfiro, ferrolhos e portas.
Tudo fechado: ninguém ouve
o tiro permanente, não
recomendável, de Vladimir
Maiakovski em seu cubículo,
a flor de abril como uma orelha
de cão. Ninguém pendura a foto
de Serguei Iessênin sem chão,
em combustão, acima do
espaço que ocupou a mão
rasante e curta de Marina
Tsvetaeva, mão de cera.
Nada disso tem fim. O corpo
persegue a si mesmo um pedido
e atende a sombra. Nunca mais
veloz pulsante ardente idílico
o ritmo sem respiração.
Pois eu nasci para sair:
aqui me encontro muito breve
o corpo agora amortalhado
de quantas tentativas foram
vãs.
Sou vertical.
Porém, deito
e vou pronunciando adeus.
Os meus amigos me olham morto.
Ninguém me toca, nenhum cúmplice
se aproxima e me abraça muito
e pergunta por que, por que
não assinei o manifesto.
Eu me exibo sem saber como
defender minha tese bruta
com teorias sobre forcas,
venenos, pistolas e saltos.
Um desses amigos nem chora
ao pressentir minha razão.
Não quis pescar comigo, nunca
viu desse modo os meus cabelos?
Outro amigo não vai querer
concordar comigo de novo
e marcar encontro no dia
seguinte, sob o sol e as frutas.
E seu pensamento atravessa
como um líquido no meu corpo,
eu, cujas unhas crescem, cuja
pele deve ser bem raspada
ou defendida contra a rosa.