Alguém para diante de um desenho ou de uma foto, pois interpretar é uma das maiores ambições humanas. Talvez exista alguma mensagem exibicionista no contorno daquele sorriso, talvez um slogan político se esconda naquela bela imagem de milhares de crianças reunidas numa praça. Interpretar pode ser um ato apontado para o futuro, como querem as cartomantes, as quiromantes, os astrólogos, os jogadores de búzios. Rabelais menciona no Livro Terceiro de Pantagruel algumas outras maneiras de interpretar, vinculadas à adivinhação, como a do exame da quantidade de buracos do queijo, das cinzas jogadas ao ar, das entranhas dos animais sacrificados. Outras interpretações estão ancoradas no passado de alguém, como quer a psicanálise, e vão buscar na idade de uma inocência que, afinal, não existiu, as explicações para a conduta atual. O palimpsesto, com suas confusas camadas de texto sobrepostas, a indicar correções, hesitações e emendas ao longo do tempo, é quase sempre o documento de várias épocas e de vários estilos, em que um texto não conseguiu esconder o outro, em que se lê o antigo sobre o novo. Atualmente estou convencido de que a Internet é um palimpsesto monumental, em que palavras e imagens podem remeter para outras palavras e imagens, segundo um processo que eliminou a transparência, mas manteve intacta uma ordem de leitura. O leitor-usuário é transferido para outros textos que só existem por um processo de remissão típico das notas de pé de página.
Os textos reunidos em Visibilidade estão marcados por uma compulsão interpretativa que se concentra na existência de imagens e interferências. Por interferência entendo, justamente, uma mensagem que surge em meio à outra mensagem para criar, desviar ou reforçar um discurso. Assim analiso, por exemplo, as vinhetas da televisão, os logotipos da emissora que surgem em meio à programação rotineira, que servem para assinalar um intervalo comercial, que são propriedade da empresa e trazem um selo de garantia. E igualmente as cédulas impressas pela Cada da Moeda em homenagem a grandes artistas brasileiros, rapidamente tiradas de circulação por conta dos efeitos devastadores da inflação. Nesse caso, a correção monetária foi uma interferência inesperada no ideal cívico e patriótico de comemorar as obras de Machado de Assis e de Mário de Andrade, sem que se desse valor a outra interferência: a relação daqueles escritores com o dinheiro.
Visibilidade corresponde também a uma atração pelo discurso da imagem. Por isso, é um livro de ensaios sobre assuntos não-literários, a maioria publicada em jornais poucas semanas depois de este ou aquele fato ter sido noticiado. Minha principal intenção foi identificar o mito que se ocultava na notícia, na foto ou na exposição de um acontecimento que se tornou importante porque a imprensa assim o quis. Tive a preocupação de desatualizar uma notícia ou um acontecimento, na tentativa de descobrir o que havia de permanente ali. Precisei muitas vezes conter a furiosa sucessão de significados que uma simples matéria jornalística poderia evocar, sobretudo porque eu estava produzindo uma outra matéria de jornal que deveria ser imediatamente compreendida pelo mesmo leitor. E assim dei início à decifração: ao analisar as relações entre erotismo e poder na campanha da atriz pornô Cicciolina para o Parlamento italiano, vali-me de um método regressivo de interpretação que encontrou nos úberes da Loba Capitolina e nos seios da nova deputada uma razoável explicação para a sua eleição. Erotismo, política e oralidade têm dado mostras de inesgotável vigor na vida política recente. O suicídio de um secretário da Fazenda americano, por sua vez, revelou a existência de uma forma autodestruidora no processo político que nós, brasileiros, já conhecíamos desde Getúlio Vargas com sua Carta-Testamento. Anos depois de haver comentado esses fatos, li a notícia sobre o suicídio do ex-primeiro-ministro francês Pierre Bérégovoy, que com seu gesto teria denunciado métodos abusivos da imprensa. Utilizando algumas vezes rudimentos de poética e de fenomenologia encontrados em análises de Bachelard e Merleau-Ponty, ou mesmo nas classificações de E. R. Curtius, foi possível elaborar interpretações sobre a mensagem da mímica e sobre o problema social dos pivetes, muito mais antigo do que se supõe. Alegro-me, agora, ao perceber como são atuais as interpretações escritas sobre fatos relativamente remotos.
Não nego que alguns dos ensaios aqui reunidos mantêm com o seu objeto uma relação de ordem sarcástica – como, aliás, Roland Barthes já havia detectado em Mythologies (1957), ao analisar justamente o papel do intérprete e do mitólogo. Talvez por isso quase todas interpretações tendem a enveredar pelo humor e pela comicidade, ainda quando são propostas comparações históricas. Essa tem sido, de qualquer modo, a atitude de muitos dos que se interessaram em análises da cultura de massa e das comunicações, como o Umberto Eco de Diario minimo (1963) e de Sette anni di desiderio (1983). Daí também uma parte substantiva de Visibilidade estar relacionada com o desenho de humor, com leituras sobre o tempo e o cômico, ou mesmo sobre o mecanismo do riso.
Desde que comecei a publicar os textos aqui reunidos e a escrever os inéditos que agora divulgo, me dei conta da monstruosidade da tarefa de interpretar, da natureza caótica e infinita que existe nas mensagens em nossa sociedade. Os signos e os mitos sopram onde querem – e não querem morrer. Muitas vezes são sólidos como um provérbio e expressam dimensões que são aparentes, mas que se tornam subitamente eternas.
Caracas, 21 de março de 1999