1
Torça o pescoço do cisne
um dois três
de novo
um dois três
– e no espelho o corpo é outro,
cresce a cada salto
e os braços as pernas lacrimejam
e a respiração renasce a cada instante
como se fosse explodir dentro da caixa.
São vinte abdominais: e a música
martela a música, nova lei
feita de um só estilhaço.
Fique forte e suado – eis um mal necessário.
2
Pode contorcer teu corpo,
mas eu te amo.
A malha transparente, melhor que a pele,
te cobre onde te quero, e ficas mais linda
assim toda vestida de nua.
Mostra-me a bunda de um modo impossível:
as duas pernas altas e o resto desce.
Ginástica de andaime. Mulher que dança
no arame. Eu te amo.
Não precisas esconder tuas garras, teu sexo
no rigor do exercício.
Já descobri quem tu és, e quando acabar
de saltar por trás de ti, fingindo que me procuro
no espelho,
vou buscar minha imagem na tua,
na horizontal vertigem do corpo que sua.
3
Com o peso preso ao tornozelo
e dois outros pesos na mão,
desço
ao chão.
Aqui estou
feito prisioneiro
de todos os músculos que tenho
e daqueles que um dia surgirão do sono
de fibras esteróides anabolizantes.
Pedalo a bicicleta que não anda:
o corpo só fica forte
porque não sai do lugar; porque,
em vez de na distância, a força
prefere estacionar no braço
e na perna cansada de não ir.
Ginástica é coisa alada?
Onde os gregos queriam chegar
depois de tanta maratona?
É preferível morrer de felicidade,
ou morrer espatifando a própria carne
contra o imóvel modo de ter força?
4
O que muda o compasso
da respiração
não são somente
dez abdominais em dez segundos:
é muito mais
o olhar de idéia física
da mulher sobre o nylon do colchão.
O torpedo da música bate
enquanto te olho;
e de repente também me atinge
teu olho – que passa olímpico
pelos meus presos no espelho.
Fica de quatro, levanta a perna
como a cadela a mijar, porém sem sexo:
eu te quero assim mesmo,
suada como se fosse depois,
ginástica como se fosse surrada.
Perdi todas as comiserações,
todos os elogios sobre a carne triste,
todas as róseas peles que respiram
e sobre as quais muitos escreveram: palpitam…
Nada disso.
Para mim, tu és um corpo que cai.
5
Vou suar contigo.
O meu músculo cresce em silêncio
como os cabelos do morto.
Pego os pesos de ferro velho (metal
em que a ferrugem sangra demais):
vou levantá-los com meus braços longos
e um dia te abraçar com força
e te mostrar que tenho poros.
Alongas as pernas, abres as pernas tensas,
exibes as caneleiras que escravizam tua delicadeza,
e tentas pular saltar atirar
– que o mundo inteiro
nasceu para o teu corpo.
6
Em volta da sala espelhada,
como num mosteiro austero de imagens piedosas,
não rezamos, mas corremos,
como se um pecado existisse e rompesse a carne,
e nós de almas culpadas por isso estivéssemos
condenados a um breve inferno de velocidade
e pouco a pouco cedêssemos os braços os pés os cotovelos
à dança que nos destrói e nos alcança assim
que o primeiro impulso sai de nossa dor.
Condenados a correr, mais do que o sangue dentro de nós,
mais do que o veloz registro de um cheiro no cérebro,
mais do que a respiração até chegar onde nos ressuscita,
e quando nos olhamos no espelho então compreendemos
que, se é mesmo humano nascer, então só morremos
para saudar a corrida que entre os dois momentos
nos obrigará a ter fome e sede, a ter ódio – e medo,
e a ter amor, caso alguém esqueça, como nós,
por um momento, de não ter fome e sede, e ódio e medo.
7
Aula de ginástica: não quero
chegar atrasado.
Não posso perder o aquecimento
que se faz de braços lentos, de quadris perfeitos,
de lado direito semelhante ao esquerdo.
Preciso me concentrar, como se
para cada movimento
eu escrevesse a mesma palavra em vários idiomas.
A perna devagar se levanta
e lentamente vai ao chão para esmagar
o que depois veremos.
Pouco a pouco fico pronto
para a luta:
que venham as mais ferozes forças,
como os furacões no mar da América Central,
pois eu já estou feito.
O exercício me vicia em ser veloz,
mas foi apenas somando cada onda
que cheguei a formar isso que sou:
um corpo que o naufrágio abandonou.
8
Não dê alimento aos animais,
pois eles comem o próprio corpo.
Não ande na contramão dos músculos,
pois há animais na pista
e no tatame, limpando o rosto
nas toalhas de pano.
Escute o barulho do velcro que se abre como a gaveta,
do tênis que a sola de borracha sanguessuga prende ao chão,
de tudo o que parece gritar ao redor do corpo
como as sereias já fizeram.
Os animais festejam – feras felizes
cheias de contrações, e tão velozes
quanto um despertador.
Eles não querem somente a permanência do tronco definido,
da perna retesada, da perfeição
do bíceps, do músculo, do tórax:
eles querem mais do que o prazer
dos batimentos
do fôlego
do tiro.
Um deles me disse, no meio de um pulo:
“Deus ensinou que os animais
preferem morrer de saúde.”
9
A Musa de collant faz ginástica vamp.
Inteiramente pública, áspera, ofegante,
os olhos flamejantes, a boca free-lancer.
Arde barroca e fere o sol, concomitante.
A sua nádega é uma dádiva em relax,
a sua práxis mostra lycra costurada;
amo essa roupa de avis-rara; amo demais
suas pernas compactas. Mulher vertebrada.
Sou Bocage perdido no seu entourage,
espécie don Juan que a ânsia assassinou
em meio à sua dança de can-can e plágio.
Sou mais frágil. Sou só. Amo e sofro o seu show.
Você sempre mais forte que um porta-estandarte.
Eu sempre mártir. Fecho éclair de quem quiser.
Eu quero o coração que é seu sem meu enfarte,
e quero semear no céu o nosso affaire.
“A ginástica ajuda os corpos”, assim como Deus
faz de seus camundongos verdadeiros ratos.
Ter aula com Você me faz sentir mais seu,
e não doem as flexões, meu stress e seus maus-tratos.
É pelo amor que faço ginástica. Assim,
alcanço enfim o corpo seu que roda e vibra
no aço atrás do espelho em risco silk-screen,
feroz feito um frisson, dona da vida, víbora.
Busco o seu corpo inteiro agora in loco in totum,
feroz feito um drive-in. Sou anjo e girassol
que vem cobrir seu corpo de pólen e próton,
e adora a pele que abre e dobra e faz lençol.
Só quero desse jeito. Nunca mais alguém
que filosofe em off pelos áridos campi,
que brinque de ping-pong, de anagrama e vaivém,
que se alongue em mentiras e me induza ao câncer.
Eu quero Você, Musa mignon, minha bela
de short e malha atlética e látex nas pernas,
totalmente post-mortem, totalmente bélica,
que agasalha o design das geleiras eternas.
Quero que nunca durma, quero que madrugue
– estupro ininterrupto que me sugue e estrague
até sentir o rosa-shocking do seu plug
despertar um satélite de luz zigzag.
Deitarei em seu leito a paixão lato sensu,
cheia de pênis, de ânus, de cóccix, de púbis,
e meu beijo de flúor azul e hipertenso
na boca deixarei, e que outro beijo a adube.
E Você se exercita enquanto eu penso. Um, dois.
Quanta meiguice nessa miss rodopiando!
E o que vejo é apenas um take. Depois,
a ponta do iceberg, um tête-à-tête brando.
Você força depressa na bicicleta ergo
sum e ergométrica, antes que existir me aqueça
e me conduza em flashback ao podre sossego
de quem monta e desmonta um só quebra-cabeça.
Ó karma de mulher, ó sexo ad infinitum
que me alarma e me torna anti-herói déjà vu,
como se ardesse em mim o último manuscrito
em que eu houvesse escrito nome e pedigree!
Eu quero respirar com Você esse exercício
de levantar halter e de deitar aos pares,
e sentir que a saúde nos pede um suplício
e altera nossos corpos, corpos cavalares.
Ir e voltar na barra de ferro, romper
o músculo que tenta me deter, e então
jamais pensar que tenho peso, ao bel-prazer
de parecer igual a Você – o diapasão
que me faz in extremis ofegar, cansar.
Mas não passo seus cremes nem arfo nonsense:
já me bastam meu sêmen, cuspe e trottoir
em que finjo o meu cooper sem qualquer suspense.
Por isso, Musa, me ame. E nunca me confunda
aos Adônis que passam por ti de headphones,
que suam sob o blaser, que contraem a bunda,
estátuas de crepon, carbono e silicone.
Minha boneca baby doll, meu champignon:
eu sou quem ama à beça. Serei seu barman,
seu homem santo, macho e batman, seu néon.
No réveillon, serei sine qua non. Amém.
Tudo o que é seu, eu quero ganhar em replay,
como ganhei de Vênus a camisa, e o spray
de uma mulher-grafito que pintei. Sim: hei
de ser viril e appeal como Você. OK?
10
Perna de pele esticada ao máximo,
perna arqueada, perna apontada,
o arco e a lira.
Não lhe falta a ginástica: já
possui a força da ponte-pênsil,
e consegue me alcançar.
A malha de cor flexível
suspende a respiração que me trai:
quem contorce o corpo, cai;
quem relaxa os ombros, cai;
perna vitoriosa, a sua perna.
Ela pisa no caminho que faz:
toda definida, de traçados sem gelatina,
deitada no ar nervoso da música,
parece querer respirar.
Ao vê-la, tão lúcida,
entendo por que não se faz ginástica no escuro.