O poema visual é bastante antigo, como se sabe. Sua tradição pode ter começado há cerca de três mil anos, a crer num documento egípcio que mostra uma espécie de palavra cruzada em labirinto. A literatura islâmica também transmitiu variados exemplos de poemas visuais. Antes mesmo da existência desses poemas que exploravam a materialidade, o código, a cifra, o ideograma, o diagrama e tantos outros fenômenos relacionados ao verbal e ao não-verbal, muito da visualidade explorada, ainda agora, por poetas, esteve presente na arte das cavernas e, mais adiante, em amuletos que serviram a alguma finalidade mística ou religiosa: esses objetos também exibiam características icônicas fundamentadas na existência da palavra. A tradição das iluminuras e da arte da caligrafia – ainda venerada em muitas culturas – contribuiu para a consolidação
do texto e do poema visuais.
Ainda assim, há quem se confunda e imagine que o soneto é uma forma poética antiquíssima, que precederia o poema visual – este, para alguns, identificado às vanguardas literárias que eclodiram mais ou menos à época da Primeira Guerra Mundial. Comparado ao poema visual, o soneto é recentíssimo. Foi com surpresa que eu mesmo, ainda estudante, descobri A experiência do prodígio, de Ana Hatherly, estudo e compilação de textos visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII, no qual encontrei a fusão do soneto com o labirinto, do soneto com o crucigrama, do soneto com as mais intrigantes artes visuais.
Muitos consideram que o poema “Un Coup de Dés” (1897), de Stéphane Mallarmé, inaugura o poema visual da modernidade. Como em toda reivindicação de pioneirismo, é preciso compreender que estratégia (ou melhor, que busca de linhagem estética, muito mais do que de documentação histórica) se encontra nessa escolha. Pois, em 1865, um livro como Alice´s adventures in Wonderland já trazia o célebre poema do Rato – no qual a representação gráfica da cauda do roedor antecede visivelmente muito do que um poeta como Guillaume Apollinaire fará anos depois, em Calligrammes (1918). Lembre-se ainda que Lewis Carroll, em Through the looking-glass, and what Alice found there (1871), fez que o poema “Jabberwocky” aparecesse pela primeira vez com a quadra inicial invertida, pois refletido de fato num espelho.
No Brasil, o poema visual ou o poema concreto só considerou, tanto na sua teoria quanto na sua realização, a sua vinculação com a modernidade e o que poderia vir depois. Mais ainda: por meio de uma interpretação francamente evolucionista, muitos dos praticantes do poema visual ou concreto, a partir da década de 1950, expressaram que havia terminado o ciclo histórico do verso – embora vários dos melhores poemas visuais ou concretos utilizem, indisfarçavelmente, a estrutura do verso. Antônio Houaiss, em ensaio famoso de 1957, chegou a ironizar aqueles que “dão um salto qualitativo capital – e querem descobrir, para o mundo, a direção da poética futura”.
Apesar de tentado pela polêmica, pela política literária e pelo debate estridente nos jornais, admiro o poema visual e o poema concreto tal como foram realizados no Brasil, a partir dos anos 1950. Um dos meus livros de crítica, A próxima leitura (2002), abre com a leitura de um poema de Décio Pignatari, “Organismo”. Admiro um poeta como Pedro Xisto, muito menos conhecido e estudado do que mereceria; e lamento que Joaquim Cardozo nunca tenha sido lembrado como um dos precursores do verbivocovisual na nossa poesia.
Por outro lado, ampliei muito a minha percepção do poema visual para campos que não se restringiram ao literário. O livro Wordplay (1992), de John Langdon, foi revelador para me fazer entender não apenas a impressionante beleza dos ambigramas, mas também para fazer ver que o poema visual – com sua poesia – poderia surgir fora da literatura: em momento algum o desenhista gráfico reivindica estar fazendo um poema, em que pese a percepção contrária de quem lê e vê o seu livro. No final dos anos 1950, Ivan Chermayeff e Tom Geismar publicaram Watching words move sem qualquer pretensão literária – mas muita convicção de que estavam destruindo uma fronteira entre as palavras e as formas visuais. São muitos – não quero citar todos – os autores que se revelaram mestres da tipografia, do design e da caligrafia. Alguns, como Sheldon Wasserman, preferiram visualizar os números, no lugar das palavras.
E assim chego à Taturana – livro de um poeta que, por acaso ou não, encontrou marcantes exemplos de poesia visual fora da tradição propriamente literária. Como tenta expressar o poema “Dentro do Vazio”, fui buscar a evidência no vazio, ou vice-versa. O visual pode surgir com aliterações e com muitas palavras, portanto, é um objeto em trânsito, buscando provocar as regras (os semáforos, as faixas de pedestre, as placas). Por ser literário, apresenta-se aqui Jorge Luis Borges em seu labirinto e se faz uma homenagem a Augusto dos Anjos, autor de um só altissonante livro, mas também poeta de impressionante impacto visual. Taturana traz algo de política e algo de humor, nem sempre disponíveis na poesia visual mais conhecida.
Taturana, como um poema, queima, come e é bonito de se ver.
Felipe Fortuna