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Quando Olavo Bilac Fez Rir [1]

Um ano antes de morrer de uma infecção pulmonar, Olavo Bilac assinou uma página de publicidade na qual enaltecia as qualidades de um xarope que o teria curado de uma “bronquite pertinaz”. A presença do poeta na vida literária do Brasil, entretanto, se fez notar por outros episódios bem menos irônicos: o escritor de Sagres (1898) não foi apenas o mais fulgurante e popular dos poetas parnasianos brasileiros, defensor e esteta da escultura do verso, mas também folhetinista, conferencista, cronista, publicitário e sobretudo humorista – poeta satírico que, sempre sob pseudônimo, ridicularizava cenas da vida doméstica ou achincalhava padres e beatas. Identificou-se, por isso, com a literatura oficial que se escrevia na Capital Federal (o Rio de Janeiro) e com a vida mundana dos literatos que frequentavam as confeitarias e os salões de chá e circulavam pela Rua do Ouvidor ou pela Avenida Central com ânsia de imitar modismos parisienses. Sua geração de boêmios, alguns dispersando perversamente seus talentos, como Emílio de Meneses e Paula Nei, conseguiu, no entanto, fazer do artista literário um escritor profissional: cada um deles vivia oscilando entre a euforia do pagamento por um soneto publicado na imprensa e a depressão por não conseguir penetrar em certos círculos que poderiam abrigar tanto a Academia Brasileira de Letras quanto jornais de prestígio, a exemplo da Gazeta de Notícias. O escritor da belle-époque não era jamais avesso ao trabalho: em troca de algum dinheiro, escrevia romances, trovas, reclames, anedotas e tudo aquilo que o interessado quisesse. Isso explica, por exemplo, a imensa bibliografia de Coelho Neto, e também a um pouco menor de Olavo Bilac – que expôs seus méritos de versejador na tradução de “Juca e Chico”, do alemão Wilhelm Busch, para crianças, além de participar ativamente da imprensa sob a guarda de cerca de 60 pseudônimos, o mais conhecido sendo Fantásio, com o qual assinava suas crônicas. [2]

O mundanismo, a boêmia dourada e as diversas atividades dos escritores não significavam, obviamente, um desregramento visceral que os incompatibilizaria com sua sociedade: pelo contrário, era notável o esforço para fundar grêmios e associações, para congregar a elite econômica em torno das numerosas conferências literárias e para importar, sempre que possível, algum vocabulário francês e atitudes caricatas que passavam por refinamento europeu da educação. Ainda que Olavo Bilac tivesse sofrido alguns meses na prisão e se visse forçado a um exílio doméstico por causa do confronto menos com a ideologia dos governantes do que com os interesses pessoais ou de grupo, a imagem perene do poeta ‚ a de um patriota, de um homem cívico que fomentou um verdadeiro culto à Pátria e o levou em peregrinação às escolas e aos banquetes nos quais se irmanava às autoridades, sobretudo as militares. Ao morrer, portanto, Olavo Bilac estava consagradíssimo: seus sonetos há muito vinham merecendo belas molduras nas revistas lidas pelas senhoras; seu nome estava retumbantemente ligado a um projeto nacionalista de que foram exemplos seu longo poema “O Caçador de Esmeraldas” e seus sonetos sobre lendas brasileiras. Não se pode ocultar, por isso, o poeta que muito contribuiu para a profissionalização do escritor no Brasil – filiando-o também ao Estado. O escritor Olavo Bilac, que prestigiosamente anunciou o xarope, dedicando-lhe um soneto que começa com esses dois versos:

Defende, Amigo, o teu país. Defende-o

Como defende a sua furna o leão.

era o mesmo que talvez tivesse percebido um país incurável por causa da trivialidade e do provincianismo que ele retratou nos poemas satíricos. Mas o poeta se encontrava, já próximo da morte, “radicalmente curado” – como confessou no anúncio.

O selo parnasiano que Olavo Bilac imprimiu em seus versos divide as opiniões sobre o valor de seu talento e a perfeição de sua técnica. Esconjurado pelo Modernismo, sobretudo o da primeira fase, e reclamado pela Geração de 45 como amável mestre, o poeta ainda sofre os golpes daqueles que revelam bem mais certa atitude mental diante da literatura do que uma convicção crítica sobre seus poemas. Os mais adoradores e irracionais chegam mesmo a afirmar que o seu nome completo – Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac-, um alexandrino perfeitíssimo, ‚ sintoma de uma predisposição inata para a arte de versejar… Outros, um pouco mais ignorantes, reduzem sua obra a um só poema, “Profissão de Fé”, verdadeira ars poetica do Parnasianismo, transformando-o num estigma de sua arte, e deplorando sua preferência por mármores, metais e formas frias. A serena meditação de Mário de Andrade, num momento especialmente polêmico, vale ainda como um antídoto contra todas essas expressões da paixão exacerbada ou do ódio ditado pela incompreensão. Num artigo da série “Mestres do Passado” (1921), nomeando o poeta de “deputado da Beleza na terra do Brasil [3]”, Mário de Andrade exalta a sua poesia amorosa e erótica, que conseguiu de todo modo “humanizar” o cultor da descrição e do detalhe que, em “A Sesta de Nero”, por exemplo, teve a proeza de atenuar a importância do imperador em detrimento do cenário em que ele se encontrava:

Nero no toro ebúrneo estende-se indolente…

Gemas em profusão do estrágulo custoso

De ouro bordado veem-se. O olhar deslumbra, ardente,          

Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.

Mas havia, realmente, um poeta de forte personalidade que admirava publicamente o pré-romântico Bocage num de seus livros iniciais, e já muito famoso, lhe dedicaria uma conferência em que enaltecia o mestre que prezava tanto a sua língua portuguesa, o amor e o sofrimento. Talvez seja exagero considerar Olavo Bilac, como fez Ivan Junqueira em sua competente defesa publicada em O Encantador de Serpentes (1987), um versemaker, segundo a celebrada hierarquia poundiana [4]. Versemakers eram, a rigor, todos os poetas parnasianos, e a honra decerto não caberia apenas ao poeta do póstumo Tarde (1919); mas é verdade que um poeta como Théophile Gautier se tornou muito considerado pelo mesmo Erza Pound que tanto fascinou o polemista Mário Faustino, levando este último a escrever um elogio do autor de Emaux et Camées (1852), tido por “um perfeito versejador, o que se afirma sem sombra de pejorativo”. É bem verdade que Faustino foi impiedoso com o parnasianismo praticado no Brasil, ponderando que muito dos poetas “não conseguiram passar de românticos bem-comportados [5]”, como se lê em Poesia-Experiência (1977).

O erotismo de Olavo Bilac, no entanto, era quase sempre delirante. Se é verdade que pouco acrescentava à fúria amorosa dos românticos, superava-a justamente por lhe trazer mais experiência, conferindo-lhe maior carnalidade. Mesmo em poemas relativos a um passado remoto, como “A Tentação de Xenócrates” ou “Satânia”, impera uma dimensão menos idealizada, que impressiona pouco pelo artifício retórico, como revelam alguns versos do último poema citado, que reproduz o monólogo da boca de uma cortesã:

Ardo e suspiro! Como o dia tarda

Em que meus lábios possam ser beijados,

Mais que beijados: possam ser mordidos.

A cortesã, a mulher lúbrica e sexual, era uma imagem obsessiva em sua poesia; significativamente, o amor de Olavo Bilac pela Pátria brasileira ganhava por vezes acentos emocionais que se distinguiam precisamente pela presença de uma eroticidade toda exacerbada. A transformação da terra nova e descoberta em corpo feminino talvez seja um topos típico de alguns escritores que vivenciaram as audácias dos seus navegantes colonizadores. Em língua portuguesa, Manuel Botelho de Oliveira compôs uma silva, “À Ilha da Mar‚”, erotizando a terra fertilíssima de que tanto se ufanou; em língua inglesa, John Donne saudava a new-found-land como a uma mulher completamente nua, confundindo terra nova e mulher virgem. Para Olavo Bilac, o Bandeirante representava o semeador, o desbravador, o lutador da terra. Seu personagem encontra-se presente não apenas no tom altissonante de “O Caçador de Esmeraldas”, mas também no soneto IX da série “As Viagens”, intitulado “O Brasil”. Cabe notar que a terra brasileira (palavra de gênero feminino e semanticamente identificada à mulher) só se transforma em Brasil (ou seja, em homem, e, por extensão, em potência) após a passagem do Bandeirante, que vem disseminar a sua força:

Beija-a! é a mais bela flor da Natureza inteira!

E farta-te de amor nessa carne cheirosa,

Ó desvirginador da Terra Brasileira!

Não há dúvida, no entanto, de que essa concepçãohistórica refletia um anacronismo saudoso de um poeta que se comprazia em pertencer a uma aristocracia do espírito, pouco afeito  ao advento da modernidade que transformava a arquitetura das cidades e chegava mesmo a transformar o verso, tornando-o mais musical e mais vago, como fizeram os simbolistas. Ele foi um dos maiores opositores do Simbolismo, e escreveu mais de uma sátira sobre os poemas novos e cheios de nebulosidades e crepúsculos. Talvez Olavo Bilac não considerasse a literatura como uma forma de ascese, no sentido percebido por Jean-Paul Sartre acerca da poesia de Mallarmé [6], ou não tivesse condições de restaurar intelectualmente uma aristocracia – aquela que existiu nas grandes civilizações; porém, diante da gigantesca Nova Iorque, em viagem, lamentava não encontrar a mesma solenidade, o mesmo apuro bizantino a que tanto se apegara: a megalópole apagava a “aura” e acendia um cenário que não lhe fazia sentido, que a um só tempo flagrava sua predileção estética e sua despedida do mundo moderno. Em “New York”, pois, escreveu:

Falta-te o Tempo, – o vago, o religioso aroma

Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,

Sempre moço perfume ancião de idades mortas…

O poeta que tanto cultivava o passado escrevia, ao mesmo tempo, versos satíricos sobre os acontecimentos mais recentes – sobre as epidemias que atingiam o Rio de Janeiro, sobre as mudanças de ministros, sobre as enchentes. Seus sonetos, poemas e quadras espalhavam-se por praticamente todas as publicações da época, como o jornal Novidades, ou então A Rua, Vida Semanária, Gazeta de Notícias e, mais tarde, a revista A Bruxa – de que foi fundador e diretor. A intensa colaboração de Olavo Bilac na imprensa surpreende pela quantidade – quantidade que ultrapassa a dos poemas publicados em livro. A vida acadêmica do Brasil ainda não foi capaz de gerar uma só edição crítica dos livros de Olavo Bilac, o que é mais grave não só porque se trata de um escritor exponencial de certa época literária, como também por ter sido ele um poeta que corrigia frequentemente os seus versos. Não era ainda, quando criticava os costumes ou gozava a sôfrega sonolência do presidente Arthur Bernardes, o “segundo Olavo Bilac”, que se revelaria ordeiro patriota, conforme estudo de João do Rio por ocasião da morte do parnasiano [7]. Por algum tempo, no entanto, especialmente entre 1895 e 1898, Olavo Bilac enchia quase diariamente as páginas da Gazeta de Notícias com poemas que glosavam desde uma simples sedução, seguida de estupro, até piadas sobre a velhice, a impotência e o homossexualismo, sem esquecer os epitáfios que dedicava aos políticos, permeados de ironia necrófila. Em l897, quando Alberto de Oliveira perdeu seu cargo de diretor da Instrução Pública, por causa da ascensão de Alberto Torres à Presidência do Rio de Janeiro, Olavo Bilac juntou-se a Guimarães Passos e os tres escreveram poemas satíricos que seriam mais tarde reunidos num volume intitulado Lira Acaciana (l900); o sucesso do gênero era grande, e, antes deste livro, fora editado em l897, assinado por Puff e Puck, o livro Pimentões. O primeiro de seus autores era, na verdade, Guimarães Passos, companheiro satírico de jornal. Um outro satírico, Pedro Rabelo, editaria As Filhotadas – casos d’O Filhote, a seção que surgiu a 2 de agosto de l896 para coroar o sucesso dos versos humorísticos que se espalhavam pelo jornal, a partir de então reunidos com destaque na primeira página. O editorial de apresentação não fazia por menos:

O Filhote, órgão que não tem partido, vem preencher uma lacuna que há  muito se fazia sentir nesta terra em que os partidos não têm órgão.

A empresa que criou este O Filhote  andou a ver se devia dá-lo em grande formato; resolveu fazê-lo pequeno, para torcê-lo à feição das circunstâncias; e, fazendo-o pequeno, teve medo de o deixar andar sozinho pelas ruas, e então resolveu que ele andaria, por ora, no colo da mãe. A gente da Gazeta, que é toda cheia de partes, queria que O Filhote saísse na última página, como matéria paga; mas O Filhote alegou que não era filho de preta Mina e não queria ter de virar de bordo quando chorasse para mamar. Ficou, pois, assentado que O Filhote sairia na primeira página, ao alto, encaixado na Gazeta, como um caso de superfelação. (Nota para o sr. Malvino, do Liberdade macho: Superfelação não ‚ nome feio.)

E como O Filhote ainda não teve tempo de reler os livros de Mme. Staffe, é provável que faça caretas a alguém, coisa desculpável em crianças, e deixe a língua de fora, mesmo aos poderes constituídos.

Com os quais tenho a honra de ser – De VV. EEx. atento venerador e criado.

                           O PAI DA CRIANÇA

É compreensível que se encontrem dentre os poemas estampados nos jornais e revistas, alguns marcados pelo humor senil e até ingênuo. As anedotas muitas vezes eram previsíveis, e a obrigação de escrever assiduamente contribuía ainda mais para a má qualidade de muitas delas. Durante a passagem do século, porém, aquelas sátiras tratavam de temas inusitados e, até certo ponto, reservados; exalavam um anticlericalismo discreto, mas constante; traziam para o público chacotas sobre os recessos da vida conjugal e do conflito entre os sexos. A Gazeta de Notícias divulgava, orgulhosamente, a quantidade de exemplares diariamente vendidos: 40.000. A população do Rio de Janeiro se nutria de jornal, ainda mais que este agregara, havia algumas poucas décadas, um público feminino que lia com avidez os seus folhetins. No jornal, as carreiras literárias nasciam ou se enterravam; a vida jornalística, feita de muita intriga e alguns ódios, levou Olavo Bilac e Raul Pompéia à beira de um duelo, que não se consumou apenas em virtude da intervenção de amigos comuns. Não era mesmo possível que o poeta de Poesias (l902) se mantivesse à parte do único meio de divulgação da atividade literária. Seu estro de versejador e seu atilado talento de cronista fundiram-se enfim no poeta satírico. Em 23 de outubro de l896, por exemplo, publicava-se este “Velho Conto”:

No Apolo, canta-se uma ópera,

Em que há  um drama de amor.

A prima-dona está  pálida…

Canta aos seus pés o tenor.

Num camarote, o Hermogênio

Diz à mulher: “Que sandeu!

“Perdes tanto tempo em cânticos…

“Ai! que tolo! se fosse eu!

“Se fôssemos nós, se fôssemos

“Eu e tu, meu coração.

“Certo outra coisa faríamos

“Que não cantigas, pois não?”

Porém, com um sorriso irônico,

Ela, abanando-se, diz:

“Sim, pode ser!… mas se o público,

“Marido, pedisse bis?”

Uma nota predominante das composições satíricas de Olavo Bilac alude aos incidentes da vida sexual dos recém-casados, aos casos de adultério, à moral suspeita dos padres, ao homossexualismo masculino e aos trocadilhos inspirados nas partes corporais. Por isso mesmo é que no prefácio a Pimentões seus autores advertiram: “Isto não ‚ leitura para meninas ingênuas que não sabem o que ‚ a vida, nem para meninos sem buço que ainda se dedicam ao saute-mouton e à peteca”. Da parte de Olavo Bilac, pelo menos, o gosto pelo erotismo desenfreado era evidente já nos livros publicados com seu nome; e foi Mário de Andrade, numa observação espetacular sobre a sensualidade do poeta, naquele mesmo artigo, quem escreveu: “Olavo Bilac foi exímio na pintura da pornocinematografia. Felizmente poucas páginas lhe dedicou [8]”. O crítico refere-se, ‚ claro, ao poeta de “Primavera” – mas de certo modo explica muito sobre o poeta satírico que, com suas ambiguidades, antes enfatizava do que atenuava o sexo, explicitando-o e tornando-o cômico. É o que ocorre, por exemplo, nesse trecho do poema “Castigo”, em que duas mulheres comentam entre si o casamento de uma amiga com um certo Gregório, e duvidam do seu sucesso:

Realmente, que destino

Com franqueza não atino,

Este mundo tem enganos!

Que o Gregório, além de feio,

É um sujeito entrado em anos. [9]

O Príncipe dos Poetas Brasileiros não reconheceria, com o título outorgado em l9l3 pela revista Fon-Fon!, os versos sem qualquer nobreza ou requinte parnasiano que tratavam tão cruamente da circunstância e do mundanismo. Tampouco reconheceria o poeta que adaptava a fábula de La Fontaine sobre a galinha dos ovos de ouro ao desastre econômico do Encilhamento; que escrevia uma “Ode ao Bacilo-Vírgula”, com a qual registrava a presença nociva da bactéria entre os cariocas; que apontava contra os inimigos políticos as agudas lanças já  treinadas no antiflorianismo; que saudava a tromba-d’água que lavava as ruas com mais eficiência do que a limpeza pública; que satirizava a mitologia greco-latina e os personagens históricos ou bíblicos, enxertando-os na personalidade de algum ministro ou presidente; que aproveitava as melodias populares da época para escrever novas letras, mais ao gosto da atualidade sociopolítica; que se indignava com o vazio na Câmara dos Deputados e com o bolso cheio de muitos deles; que, enfim, ao perceber alguma autoridade acordando de um sono cheio de ócio, se surpreendia:

Aquela pasta (suspeito)

Não era pasta, era leito…

Acordou! que comoção!

Mas não tenha medo, ó gente!

Porque ele acordou somente

Para pedir demissão! [10]

Ainda não se escreveu um estudo que resgate a psicologia do escritor que atravessou a conflitante passagem do Império para a República brasileira. Sérgio Miceli escreveu uma interessante análise sobre os anatolianos – é bom lembrar que o jovem Drummond se considerava um deles – no opúsculo Poder, Sexo e Letras na República Velha (l977). A revisão histórica do período, no entanto, aparece em boas mãos – tendo sido iniciada com Brito Broca em A Vida Literária no Brasil – l900 (l956), até Cinematógrafo de Letras (l987), de Flora Süssekind, sem esquecer a interpretação de Nicolau Sevcenko em Literatura Como Missão (l983). O grupo desses estudos permite compreender, ao menos, as sutilezas da vida literária brasileira durante uma belle-époque tão diversificada que abarcou os últimos solfejos parnasianos, a angústia transcendente dos simbolistas, a prosa um tanto positivista de Euclides da Cunha e as críticas sociais de Lima Barreto. Na entrada do século XX, a situação de um escritor como Olavo Bilac parecerá irônica: o antigo escritor que esbravejara contra o Marechal de Ferro agora sorria para as forças militares, que imediatamente endossaram os seus projetos para a lei do serviço militar e aplaudiram a sua doutrina da defesa nacional. Surgira, enfim, um escritor pedagogo e moralista – que parecia ter transferido o rigor da métrica para uma caligrafia da disciplina. Nunca é demais lembrar o que desse instante surgiu:

Pátria! latejo em ti, no teu lenho, por onde

Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho! [11]              

Talvez fosse interessante observar certas tendências nacionalistas e guerreiras, algumas reacionárias, outras fascistas, que assombraram poetas diferentes como Bilac, D’Annunzio, Apollinaire e Ezra Pound. E, ainda, descobrir os acidentados itinerários da vida literária que muitas vezes conduziam a um duplo do artista literário. Duplo que parodiava seus contemporâneos, que conhecia as mazelas da política, como fez com o célebre soneto de Luís Guimarães Jr., “Visita a Casa Paterna”, transformado em “Visita ao Tesouro”:

Como um’ave que volta ao ninho antigo,

Depois de fazer muito desaforo,

Eu quis também rever este Tesouro,

O meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio pérfido e inimigo

(Era o espectro do Déficit!) num choro,

Por entre ratos e gambás em coro,

Tomou-me as mãos, e caminhou comigo.

Aqui, outrora… (Oh! se me lembro e quanto!)

Houve muito dinheiro acumulado!

E hoje, papai, nem um vintém… O pranto

Jorrou-me em ondas… Meu Tesouro amado!

Um compadre comia em cada canto,

Comia em cada canto um encostado! [12]

O humor é uma das heranças irrecusáveis que o poeta parnasiano, o compositor de hinos e o nacionalista que foi Olavo Bilac nos deixa. Com esta herança, oficialmente desconhecida, será  possível compor o retrato mais aproximado de um escritor que permanece conhecido apenas pela suntuosidade do beletrismo; e, no entanto, o poeta foi um dos que mais engajou a atividade do escritor nas formas que a imprensa e a publicidade consagravam a um novo público.

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[1] Suplemento Cultura, O Estado de S. Paulo, 17.12.1988.

[2] Cf. J. Galante de Sousa, “Olavo Bilac e seus Pseudônimos”, in Machado de Assis e outros estudos, p.41-75. Trata-se do trabalho mais exaustivo e guia perfeito para a identificação dos pseudônimos do poeta. No mesmo volume, também importante o estudo “Um Livro Chamado Pimentões”, p. 201-210.

[3] Apud Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro. 1. Antecedentes da Semana de Arte Brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, 5ª edição), p. 284.

[4] “Bilac: Versemaker”, in O encantador de serpentes (Rio de Janeiro: Alhambra, 1987), p.61-74.

[5] Poesia-experiência (São Paulo: Perspectiva, 1977), p.77.

[6] Jean-Paul Sartre, Mallarmé – La Lucidité et as Face d´Ombre (Paris: Gallimard, 1986), p.33 e p.151-168.

[7] A ideia do “outro” Olavo Bilac é comentada por R. Magalhães Júnior, in Olavo Bilac e sua época (Rio de Janeiro: Americana, 1974), p.266-277.

[8] Cf. nota 3, p.286.

[9] Gazeta de notícias, 16 de março de 1897. Republicado em Pimentões (Rio de Janeiro: Laemmert & Cia., 1897), poema XXXI.

[10] “Acordou”, in Gazeta de notícias, 20 de novembro de 1896.

[11] “Pátria”, in Poesias (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, 2ª edição), p.267.

[12] Lyra acaciana (Rio de Janeiro, 1900), p.21-22

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