O ESTADO DE S. PAULO
Suplemento Sabático
Sábado, 2 de julho de 2011
DUAS VERSÕES DO EXERCÍCIO CRÍTICO
Coletâneas de artigos revelam esforço da análise madura
Alcides Villaça
A busca de compreensão do fenômeno literário supõe que a constituição e a relevância de uma obra se apresentem como problemas. A reação primeira do leitor crítico não estaca em si mesma, mas avança por um dos tantos caminhos que se abrem à investigação e à valorização do objeto literário. Júlio Castañon Guimarães, em Entre reescritas e esboços, e Felipe Fortuna, em Esta poesia e mais outra lançam-se ao exame da literatura sabendo-a problemática e investigando-a, o primeiro, no caminho metódico das pesquisas desdobradas, e o segundo, no âmbito mais vertical e imediato das resenhas. Práticas críticas tão distintas convergem, por vezes, para objetos comuns, que iluminam de forma diversa. Ao aproximar aqui essas duas obras de críticos (e poetas) maduros, não pretendo mais que realçar as ênfases e os pressupostos de duas bem definidas vocações.
Júlio Castañon Guimarães abraça a pesquisa minuciosa, documental, investigativa, para relevar sobretudo aspectos da produção da literatura por vezes considerados marginais à obra, como no caso da correspondência entre os escritores. Interessa ao estudioso tanto o exame de casos específicos (cartas de Murilo Mendes a Drummond e Lúcio Cardoso, por exemplo) como a reflexão sobre o gênero mesmo da correspondência. Resulta desse duplo movimento a exposição do que seria a gestualidade dos autores, com a qual fazem reconhecer suas posições e convicções pessoais, ao mesmo tempo em que o estudioso vai adensando aspectos definidores desse gênero, como o da passagem da comunicação privada para a de interesse público. O pesquisador pondera o que há de construído literariamente na linguagem das cartas, o que nelas se dá como fator de distanciamento e/ou de aproximação entre os interlocutores, no amplo espectro que vai da abertura à delimitação do espaço pessoal. Está visto que o fenômeno literário, para Castañon, supõe como significativos traços por vezes mínimos e ao mesmo tempo objetivadores da significação mais ampla de uma obra, ou do projeto em que ela se engaja. Nos bastidores da escritura, os movimentos são reconhecidos em sua inflexão para o que surge no palco.
Veja-se, por exemplo, como o exame da correspondência entre Paulo Leminski e Regis Bonvicino reforça a iluminação dos movimentos dramáticos da poética leminskiana, dividida entre a coesão e a dissolução de princípios construtivos, entre o culto rigoroso e o destravamento das formas. Ou como no romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, o recurso às cartas, trazendo consigo o que já há de fragmentário no gênero delas, ajuda a constituir a instabilidade da narração trágica. Num jogo multiplicativo de remissões intertextuais e achados de diligente pesquisa, Júlio Castañon mapeia meticulosamente caminhos da produção literária, seja investigando a presença de Mallarmé no Brasil, seja realçando aspectos da interpretação oral que Drummond e Cabral registraram de seus poemas. É sugestivo que o autor de Entre reescritas e esboços, respeitado estudioso da poesia de Murilo Mendes, declare interessar-se não apenas pelo “nível das grandes interpretações do monumento” que é a obra de Murilo, mas também pelo “nível das pequenas oscilações” que se dão em sua elaboração. Custa tempo, atenção e talento, como se sabe, trilhar com proveito esse caminho que investiga o mínimo oculto para melhor divisar e interpretar a produção do essencial.
Já o crítico Felipe Fortuna faz uma aposta (indiscutivelmente ganha) na sobrevivência em livro das resenhas literárias nascidas em jornal. Para que isso se dê, a condição é a de que a resenha não perca suas “qualidades vitais: o primado da opinião, a ênfase analítica, a tendência ao debate” – como propõe o autor, em sua militância como crítico no extinto Jornal do Brasil. De fato, o leitor encontrará em Esta poesia e mais outra matéria crítica de interesse permanente, em discurso ácido, provocador, a que não falta o poder da argumentação, pela qual se distinguem o compromisso com a reflexão bem fundada e o improviso arrogante e politiqueiro. Certa tendência à iconoclastia e à contestação dos juízos estabelecidos leva Fortuna a arguir, por exemplo: o prestígio benevolente e automático das vanguardas agora midiáticas, tão próximas, na essência, das formalizações beletrísticas; o insistente e cansativo bordão da “crise do verso”, que pode funcionar como álibi para poetas aquém ou além de qualquer crise; o compadrismo literário, pelo qual os afetos pessoais ameaçam tornar-se critério de valorização estética; a parcialidade viciosa do crítico Hugo Friedrich no enquadramento da lírica moderna. A acidez não impede que Felipe Fortuna reconheça os dramas dos criadores e de suas criações, como no caso das polaridades vividas e criadas por Waly Salomão e José Paulo Paes, ou que externe sua paixão de leitor e tradutor da poeta renascentista francesa Louise Labé, cuja existência autoral encontra-se, aliás, sub judice acadêmico.
Para o autor de Esta poesia e mais outra, cabe às resenhas o alcance crítico do pequeno ensaio – o que prova seu respeito pelos leitores, de jornais e de livros.
Alcides Villaça é professor de Literatura Brasileira na USP