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Resenha de Antonio Carlos Secchin

RioArtes
Ano 2, n.10, junho de 1993*

UM SALTO MORTAL
Antonio Carlos Secchin

O tema é a morte; o título é Atrito; a editora, Alarme. Se, apesar disso, o leitor se aventurar no segundo livro de poemas de Felipe Fortuna, vai encontrar (coisa rara) um estilo não tributário dos mandamentos da poesia de agora, tais como a exclusão da emotividade e a hipertrofia da metalinguagem.
Fortuna estreou em 1986, com Ou vice-versa. Depois, publicou os artigos e ensaios de A escola da sedução, onde, ao lado de textos polêmicos e de circunstância, em que era nítida a satisfação de demolir certas figuras e figurões, sobressaíam-se estudos argutos sobre Adélia Prado e Bilac, dentre outros. Agora, retoma ao verso com Atrito, desenvolvendo uma linha de reflexão existencial já sinalizada em vários poemas do primeiro livro.
Como quase diz o ditado, promessas são dúvidas: nunca estamos certos de que serão cumpridas. No caso de Felipe, seria precipitado falar em “realização”. Afinal, paralelamente ao selo pessoal de boa parte da obra, persistem marcas excessivamente cabralinas em “A Construção do Movimento” e “Modos de Morrer” –
Descobriu que o corpo, do
mesmo modo que os rios
e os encanamentos, possui
tráfegos, fluxos intensos
— , inclusive na utilização da quadra e do metro curto. Um tom pessoano, via Álvaro de Campos, se inscreve em
Não tenho sono. Estou acordado como um cão. (…)
Estou acordado — e é um modo de me confessar.

Mas importa assinalar, para além disso, uma sensibilidade melódica e metafórica (“estou com ela, estou em paz, que me arranha e adormece, / fera fenecida, flor de espinho em vez de pétala, magnífica”) conjugada a um pendor especulativo refratário a meros torneios verbais ou ao beletrismo de ocasião. O sujeito lírico a que Felipe empresta a voz compõe paisagens interiorizadas e registra de modo obsessivo a presença da morte, em 17 dos 26 poemas do livro (“minha constância diuturnamente / de me perguntar minha morte”). Paisagens de um espírito noturno, lunar, com versos que soam deslocados quando dirigidos a um descritivismo exterior, pitoresco (“o caju, o pirão, o maracujá, / os conventos esquecidos, as colinas, / o peixe à beira da praia”). É de um dentro, desolado e dissolvido, que a melhor poesia de Fortuna não cessa de falar. O Outro é apenas um objeto em que de vez em quando se esbarra, sem deixar senão vestígios que reforçam a ausência, como se lê em “Amizade”:
Não tenho paciência para pensar
no seu enterro.
………………………………………………………….
Por algum descuido, não conheço
A sua solidão – e ela
nunca se infiltrou na minha.

E esse sujeito lírico, murado em si, consente em ceder somente o que já não é seu, a exemplo da “Sombra que não me pertencia”. Para tal corpo resguardado, que tateia uma realidade inóspita e reforçadora de sua reclusão (“sou coisa distante de ti, ó corpo feminino”), não surpreende a opressão de um espaço fechado, autossuficiente (cf. “Obsessivo Possessivo”); a própria declaração de isolamento, no entanto, denuncia frestas de assédio à multiplicidade que fascina e acua o poeta, e o faz lançar a esmo perguntas “A Quem Quer que Seja”, numa busca explícita de interlocução.
Um texto, porém — o mais longo, ocupando quase um terço do volume —, abre perspectivas diferentes. Refiro-me ao ludismo de “Poemas para a Aula de Ginástica”, cuja variedade rítmica acompanha o andamento da sucessão dos exercícios, e em cuja nona parte (ou sessão), num registro simulador do coloquial, o autor insere uma cadeia de rimas inusitadas:
A Musa de collant faz ginástica vamp.
Inteiramente pública, áspera, ofegante,
os olhos flamejantes, a boca free-lancer.
Arde barroca e fere o sol, concomitante.

Se eventualmente ainda persistem alguns laivos retóricos (p. ex., a utilização reiterada do “tu”, de tradição mais “literária”), o conjunto revela um poeta que articula com humor e inteligência urna analogia entre dispêndio físico (ginástica) e mental (poesia), ambos aspirando à perfeição da forma. Pois, como anotou em “Anatomia”, “é, acrobática, sobre o papel a escrita”: exatamente por isso, Fortuna consegue com frequência descartar o malabarismo barato; em versos temperados de ironia, chega perto do salto mortal.

*Texto republicado em Antonio Carlos Secchin, Poesia e desordem (Rio de Janeiro: Topbooks, 1996) com o título de “Poesia e Ginástica”, p.151-153.

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