Folha de S. Paulo
Suplemento Ilustrada
27 de dezembro de 2014
CRÍTICA POESIA
FELIPE FORTUNA TRATA DE TEMAS SOCIAIS SEM DISPENSAR FORMA POÉTICA
Em ‘O Mundo à Solta’, autor mostra que não está preso ao mundo real
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um dos dilemas de quem escreve poesia é como tematizar o real -sempre terrível- e ainda manter ativo e sutil o corpo da linguagem.
Muitos dizem que o próprio ato poético é, em si, político, independentemente do objeto abordado. Ainda assim há os que optam pelo tratamento de temas engajados como a injustiça social, atentados terroristas, indústria de armamentos, sem, com isso, abrir mão da forma poética. É o caso de Felipe Fortuna, em seu novo O mundo à solta.
É claro que, antes dele, vários escritores brasileiros entraram nessa seara, como Drummond, João Cabral, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos e tantos outros. Esse livro, entretanto, é quase exclusivamente voltado para a problematização de temas sociais, numa época em que essa prática é mais rarefeita.
Em “Reduzir os Desastres Naturais”, por exemplo, lemos: “Morando no planeta / onde venta e o mar / se diz tormenta, um mantra / permeia: é necessário / reduzir os desastres naturais.” Em “Caixas de Pandora”, “[…] Tudo se abriu, / tudo ficou aceso e surgiu um palco / e súbito sumiram as torres gêmeas“.
PLURALIDADE
É claro que não é desejável descontextualizar versos, mas é o que se pode fazer nos limites de uma resenha. Mesmo assim, é possível vislumbrar, aqui, o aspecto inegável da explicitação verbal.
Até que ponto vai a preocupação social e até onde vai a especificidade poética? Muitas vezes, nesses poemas, fica difícil discernir. São muito mais sutis os casos em que, por exemplo, “[…] o último soldado / chegou dos Alpes / atravessado por lanças, pernas, diarreia?“, ou “dia e noite, ou melhor, chova / ou faça sol, esses insetos / deixam de circular / ovos e larvas/ se petrificam na água“.
A pluralidade de significados, o trabalho sonoro, rítmico e imagético, nestes últimos casos, fazem com que o fato tematizado se expanda, no sentido de atingir um valor semântico que o ultrapassa e que o torna independente de tempo e espaço específicos.
A última parte do livro, reveladora no título “Outros Assuntos” – como se os assuntos do real fossem, necessariamente, mais importantes –, parece libertar-se das amarras temáticas e avança mais solta no sentido do trabalho com a linguagem: “Tudo é luz, a incendiar na chapa / as vontades mais nítidas“.
Talvez o que falte à poesia dita engajada seja justamente um maior incêndio das vontades nítidas, ou estaremos, até nisso, condenados estritamente ao real.
NOEMI JAFFE é doutora em literatura brasileira e autora de “O que os Cegos Estão Sonhando?” (Editora 34).
O MUNDO À SOLTA_________________________
AUTOR Felipe Fortuna
EDITORA Topbooks
QUANTO R$ 39,90 (106 págs.)
AVALIAÇÃO bom