O GLOBO
Sábado, 10 de junho de 2000
AS MITOLOGIAS DO COTIDIANO SOB A ÓTICA MALICIOSA DE FELIPE FORTUNA
Um passeio bem-humorado de Cicciolina ao leão da Receita e grafiteiros
Wilson Coutinho
Ao analisar os efeitos “políticos” dos seios da atriz pornô Cicciolina, eleita para o Parlamento italiano em 1987, indo até os obituários dos jornais ingleses, com seu tom humano e, por vezes, doses de malícia, o diplomata e escritor Felipe Fortuna auxilia-se, para o seu mais recente livro, do vasto filão inaugurado pelo semiólogo e escritor francês Roland Barthes (1915-1980) em Mythologies, textos escritos entre 1954 e 56, publicados no ano seguinte em Paris. Por meio do que se publicava na imprensa em geral, texto e imagens, Barthes criava uma sofisticada leitura do cotidiano, válida devido ao seu talento para esculpir cenários intelectuais e frases.
Barthes foi do boxe a
discos voadores e Garbo
Citando Baudelaire, alegando que o boxe era jansenista — um charme intelectual fora de propósito no uso de uma austera filosofia cristã — Barthes era divertido compará-lo com o catch-can, um tipo de comédia da luta livre. Depois podia passar para detergentes, discos voadores, o rosto de Grela Garbo, o cérebro de Einstein, o bife com batatas fritas, até mesmo indo se divertir com a testa do abade Pierre, o símbolo da caridade na França contemporânea, o que seria o mesmo que escrever, com maldade, sobre a iconografia da magreza em Betinho.
Seguindo esta trilha de escrever crônicas para intelectuais, sem maior critério de verdade, exceção do brilho do estilo, Felipe Fortuna é atraído aos seios de Cicciolina por uma comparação com a Loba Capitolina, que amamentou, segundo o mito, os gêmeos Rômulo e Remo. É possível que ele, então, possa escrever “Com a aparição dos seus seios, a atriz pornô indica a obsessão de um eleitorado que se encontra na fase oral”. É verdade que se o eleitorado fosse assistir a alguns de seus vídeos estaria fixado em todas as fases sexuais possíveis e imaginárias, da zoofilia à anal. Mas o estilo deste tipo de crônica é a observação pulverizada pelas regras da informação mediática.
A partir disto, o autor, com o jogo de sua cultura, constrói decifrações que, na verdade, não decifram nada. Criam outro enredo e outro tipo de leitura comunicativa. Assim, o escritor pode falar do leão, símbolo da Receita, da expectativa do que foi o bug do milênio, em seus dois períodos. Antes, com seu milenarismo e, depois, quando os cartões magnéticos saíram, sem dificuldades, dos caixas eletrônicos.
Comenta a ação dos grafiteiros e, com excelente humor, mostra a poeira de glória que atingiu os símbolos cívicos e culturais do país, enterrados pela ação do período da economia inflacionária. Transformados em notas, todos os heróis foram rapidamente desvalorizados, de Machado a Villa-Lobos, de Rui Barbosa a Mario de Andrade, o mais fugaz mausoléu que ousou-se construir para os imortais. Textos deste tipo, desde Barthes, são obrigatoriamente enfáticos, não permitindo as cláusulas da dúvida e da incerteza. São impérios do verbo ser e do estar. Por exemplo: “No horário infantil, a criança é tudo aquilo o que acontece entre dois desenhos animados”, comentando os intervalos televisivos. Esta estilística tem a vantagem de evitar os “é provável”, “talvez”, “é possível”, normas cerimoniosas para deixar o leitor e o autor com um pouco do bom álibi da dúvida.
Além da capacidade de Felipe Fortuna trabalhar bem neste gênero (seus textos foram publicados anteriormente na imprensa), ele nos reserva uma sensibilidade toda especial para a análise de cartuns. É o que faz com Borjalo, Chas Addams, com seu tom proustiano, e Quino, com sua fatalidade em relação à morte. O livro, por outro lado, é muito bem escrito e engraçado. Pode-se discordar do excesso do tom afirmativo, se o leitor tem alguma estima pela dúvida, mas não do seu impecável humor.