facebook

SER PIVETE*

O menor abandonado já preocupava um escritor como João do Rio, em crônicas do início do século, quando o Rio de Janeiro vivia sua belle époque. A palavra pivete é moderna e encontra-se associada à violência, assim como pixote. O cronista carioca denunciava um retrato da miséria e da promiscuidade na infância que só atualmente tem provocado maior indignação.

O pivete pode surgir de todas as esquinas – mas a palavra original, pebete, surge na Espanha, onde significa graciosamente o fio inflamável que leva o fogo à bomba. Em língua portuguesa, o pivete também é um estopim: explosão de um paradoxo que associa à infância a sombra de um ladrão, de um assassino. Mas o pivete é essencialmente criança: criança esperta, como define nosso dicionário mais popular, o mesmo que afirma ser pixote palavra originada do chinês (língua na qual significa “não sei”), e que se refere àquele que joga mal, à pessoa inexperiente. Existe mais um paradoxo, e existirão muitos outros, nesse jogo violento de descobrir a idade da morte na idade da criança, ou então a esperteza maior do que a ingenuidade, às vezes acompanhada de um sorriso quase demoníaco como o daquela menina subitamente famosa por trazer à mão uma arma. A criança sabe que existe na arma o heroísmo que nenhuma ficção infantil poderia garantir tão bem.

Para entender o pivete, no entanto, é preciso mais do que entender as palavras. Não se deve, sobretudo, atualizar o pivete – e, desse modo, atualizar a miséria -, pois que o problema do abandono já pertence a uma infância muito antiga. Evaporação da inocência, perda da sensibilidade, o pivete é a imagem seminal do destino: ali tudo começa e, de algum modo, tudo termina. Não é mais uma criança levada, travessa – mas uma pequena história sobre a qual já paira uma sentença, reação mais violenta do que a do castigo. Pois, sozinho, sem o amor de ninguém, o pivete sofre abandono de todos. Diz que mendiga para levar dinheiro para casa, quando não sabe onde mora; experimenta de tudo, a droga e o sexo, pois o mundo, assim como ele, também não tem idade: é um universo casual onde nasceu, e que se consome na dimensão exata de sua vertigem e de seu perigo, no qual o pivete alimenta uma fome contínua e autofágica – a de tudo o que não lhe pertence. Jogo da sobrevivência aos sete, aos dez anos – tal como enviar uma pessoa à Lua sem lhe revelar a ausência da gravidade.

Assim como muitos imbecis dizem que no passado as pessoas eram mais fortes e viviam mais tempo, muitos dizem que o pivete é um flagelo de agora, uma doença urbana, o resultado da lógica selvagem das cidades. São lugares-comuns que procuram ocultar a permanência e a durabilidade da miséria – e, nesse sentido, a sua atualidade. Mente-se muito mais: acredita-se que a miséria se fortalece em tempo de crise, como este da nenhuma prosperidade, do endividamento externo e da dívida pública. Porém, basta que tenha existido um cronista mundano, João do Rio, a flanar pelo cenário da belle époque, para que a tese se demonstre equivocada.

Pivetes: crianças que precisam nascer?

Pivetes: crianças que precisam nascer?

A prosperidade da capital do Brasil era evidente na passagem do século, na atmosfera de uma República recém-fundada, do aparecimento das novas máquinas e das novas técnicas, do refinamento afrancesado e dos alegres passeios dos capitais estrangeiros. Alguém também passeava, jornalista da outra face da moeda: assistia às missas negras no país católico, descrevia ao mesmo tempo a fome e o ópio, a velhice das coristas, os tatuadores, os músicos ambulantes e os homossexuais.

Ele não era sequer um defensor ou exímio praticante da outra vida – era um intelectual, apenas, e preferiu amar as ruas a sentar-se num lustroso gabinete onde, por exemplo, Coelho Neto pinçava algumas palavras rebuscadas, ou em confeitarias também rebuscadas onde Emílio de Meneses brincava de maltratar os seus amigos, dedicando-lhes sonetos cuja sátira se reduzia quase sempre ao aspecto físico. João do Rio, não. O que aguçava a sua pena de escritor era talvez um prazer mórbido de fixar as cenas deselegantes de sua época, quase sempre trazendo à sua reportagem e à sua crônica uma nota moralizante e preconceituosa. Era um Rio povoado de contradições – cidade e escritor. Mas graças a este último ainda é possível penetrar nos presídios, para conhecê-los por dentro, talvez com maior realismo do que com as câmeras de televisão de hoje, tentando flagrar as tentativas de fuga, a morte dos traficantes, as revoltas e as transferências de presos, e a angústia familiar. Em A Alma encantadora das ruas (1908), além de “O Dia das Visitas”, ele escreve sobre “Mulheres Detentas”, revela o talento poético dos “Versos de Presos” e examina “A Galeria Superior”: “No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, com miolo de pão, santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de fuga, os professores do roubo, os iniciadores dos vícios, os íntimos passando pelos ombros dos amigos o braço caricioso…”

Quem se importou com os presídios, os mendigos e as pequenas profissões não poderia esquecer a infância – e, perplexo, tratou do tema em “As Crianças que Matam”, do livro Cinematógrafo (1909), e “Os Que Começam…”, de A Alma Encantadora das Ruas. Na primeira crônica, relata um passeio ao bairro da Saúde, “cuja história sombria passa através dos anos encharcada de sangue.” Ali encontrou crianças em bando, algumas aprendendo inglês ou francês da boca dos práticos que fundeavam seus barcos no Cais do Porto. “Todos incondicionalmente abominam o Rio: querem partir.” Na outra confessa ter interrogado em apenas quatro dias 96 garotos, todos abandonados ou escravizados, o que decerto é a mesma coisa. “Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos de um lustre de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades.” Certo de que essas crianças são o “broto das árvores que irão obumbrar as galerias da Detenção”, o cronista prefere especular sobre a conivência das famílias, das supostas madrinhas e da sociedade inteira na perversão da sociedade infantil.

O pivete parece não ter maculado a sociedade festiva de então, repleta de gente alegre; se está maculando nossos dias é porque mais uma denúncia foi feita: os traficantes do pó branco se dizem marginais da mesma qualidade dos que praticam os crimes do colarinho idem. E muitos ladrões apelam para esse álibi evidente, a saber, o de que os roubos não são praticados somente pelos que são presos. Contudo, o drama da infância parece mais atroz não apenas por causa da pouca idade dos envolvidos: mas porque eles decidiram menos, de uma forma ou de outra estão desorganizados e perdidos. Seus crimes não têm novidades, mas parecem muito escandalosos: pois os pivetes são crianças, e dizem cada vez mais alto que precisam nascer.

______________________________________________________

* Jornal do Brasil, 20.09.1987

Print Friendly