Há mais de trinta anos a poesia de Thiago de Mello vem anunciando a aurora. Marcada pelo engajamento político, ela atravessa um momento crucial de nossa História: a expectativa das reformas sociais e, por fim, o golpe militar de 1964. Naquele mesmo ano, poemas como “Os Estatutos do Homem” e “Madrugada Camponesa” estavam sendo escritos, confirmando o talento do poeta na prática da esperança. Considerado como escritor de plena maturidade – principalmente com a publicação de Faz escuro mas eu canto (1966) -, era de se esperar que Num campo de margaridas (Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986) trouxesse ao menos o florescimento de um poeta em alta estação. Mas não é o que ocorre: à parte o mau gosto do título, trata-se de um livro ingênuo, de poemas que atestam um otimismo a que falta, no plano da criação poética, bastante convicção. Como quem não domina seus recursos formais, Thiago de Mello se deixa embalar por composições que são, a um só tempo, cantigas melodiosas e anotações pessoais – mas, em nenhum dos dois casos, se trata de grande poesia. Houve muita pressa em lançar esse livro – o que é marcante na quantidade de erros de revisão. Mas a pressa foi ainda mais terrível com o poeta: tendo coligido poemas do período 85-86, e publicando-os ao final deste último ano, o resultado é decepcionante.
Quero ser capaz de amar,
mas não sonho galardão
que não seja o da alegria
do amor ao meu coração.
(“Sagrada Alegria”)
Ninguém é capaz de associar tais versos à maturidade de algum escritor. No seu caso, entretanto, não se trata apenas de um mau momento, mas sim de um equívoco constante que se estende por toda sua obra, e que está na raiz do seu engajamento político.
A meditação filosófica jamais foi marcante na poesia de Thiago de Mello: mesmo um poema como “Narciso Cego”, repleto de sugestões, acaba sendo um instante de reflexões previsíveis. A sua estreia, com Silêncio e palavra (1951), foi de fato salutar: ali estava, escapando aos cacoetes formais e à febre de sonetos da Geração de 45, um poeta que se aventurava em sinceras cogitações sobre o tempo e a morte. Sem qualquer ironia, o livro representa um ponto alto de sua obra, e ao mesmo tempo revela algumas qualidades que apenas se definiriam mais adiante. Thiago de Mello levou a sério a anotação que escrevera em sentido mais amplo:
Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.
(“Silêncio e Palavra”)
Consta também desse livro a inauguração de um tema obsessivo, o da aurora que vence a escuridão – pedra fundamental de sua poesia:
Mas o homem noturno espera
a aurora de nossa boca.
Balizando sua atitude filosófica com os termos de uma oposição tão simplista, a sua dicção poética se abalou: maniqueísta, ela não respondia mais pela própria complexidade de seu objeto primordial, o ser humano. Com um mínimo de cuidado, percebe-se que a poesia de Thiago de Mello é feita de poucas ideias: pretendendo ser cosmopolita, não ultrapassa o esboço de uma luta entre o Bem e o Mal, de oprimidos e opressores, o que exprime, para além da metáfora fácil, a dimensão menor de sua poesia.
A sua ambição filosófica é, por isso, de um primarismo constrangedor. Valendo-se de formulações desastradas, escreveu:
não tenho jeito, a não ser
o jeito de ser sem jeito,
em Toadas de cambaio (1959); ou então, em Mormaço na Floresta (1981):
sei que sou porque já fui
quando for no que serei.
Outro exemplo, o livro Horóscopo para os que estão vivos (1966), em que dedica poemas para os doze signos zodiacais, é ainda mais escandaloso. Os versos
Mas é desgraça demasiada
para tão pouco horóscopo
soam como necessária autocrítica.
É preciso recordar que a literatura engajada, àquela época, procurava soluções “populares”, que dessem finalidade aos diversos textos, com base tanto na realidade nordestina quanto nas apostilas de Gramsci. Ferreira Gullar escrevia romances de cordel; Moacyr Félix compunha longos cantos e editava cadernos de poesia que registravam o inconformismo com a ditadura militar e o imperialismo norte-americano. Morte e vida severina (1955), de João Cabral de Melo Neto, conhecia fama cada vez maior – e é, ao que conste, o melhor resultado de literatura engajada que se fez no Brasil. Thiago de Mello, por sua vez, procurou dar um sentido político às tentativas de solidariedade que marcavam sua poesia, proclamando a igualdade das classes. Assim, escreveu:
Camponês, plantas o grão
no escuro – e nasce um clarão.
Quero chamar-te de irmão.
(“Cantiga de Claridão”),
um tanto à maneira de Moacyr Félix, que escreveu com a mesma fraternidade manual em “A Mão Que Estendo”:
Estendo a mão ao soldado
e pergunto por que não.
Ele é um homem como eu,
posso chamá-lo de irmão. [2]
Essa poesia de mãos dadas é um testemunho de época, certamente, mas é também, no caso de Thiago de Mello, um sinal a mais: o da crença na comunhão cristã.
O encontro do engajamento e do cristianismo, em sua poesia, é marcado pela crença no valor missionário da literatura. Sua dicção cristã é confusa, e em Num campo de margaridas ele expõe a plenitude de sua ambiguidade teológica:
Se de Deus me desperdi,
Jesus foi quem me ficou.
(“Jesus Comigo”)
Sem estar jamais livre da formação religiosa que recebeu, Thiago de Mello supõe ter perdido a metafísica cristã, resgatando tão-somente as ideias libertárias de seu maior ideólogo. Isso, é claro, não se afasta das insistentes oposições que têm lugar em sua poesia – mas atestam também uma falsa questão. Pelo menos é o que se conclui de poemas em que se refere ao erotismo. Para Thiago de Mello, o encontro erótico é uma experiência teológica. Em seu livro mais recente, o terceto
Te amar (estremeço)
me leva perto de Deus.
De repente O Mereço.
é o arremate perfeito dessa visão. À diferença de Moacyr Félix, companheiro de geração e de lutas, que preferia o erotismo no plano das relações humanas, Thiago de Mello demonstra uma evidente falta de vigor: seu devaneio místico é até mesmo inesperado – mas só não surpreende porque, ao mesmo tempo, é tedioso.
No Brasil, a sua poesia é uma das que mais se aproximou do texto discursivo, e é lícito afirmar que, desejando ser poeta, ele é quase sempre um prosador. A distinção é necessária por vários motivos. Inicialmente, porque retrata a mania quase obrigatória dos poemas políticos, que é a grande extensão. A musicalidade também se compromete, e por fim a expressão poética se reduz ao quase nada. O que confirma uma fecunda distinção de Jean-Paul Sartre acerca da natureza do poeta e do prosador: em Qu’est-ce que la littérature? (1948), o escritor francês filia a poesia mais propriamente à pintura, à escultura e à música, definindo o poeta como um ser que se recusa a utilizar a linguagem, já que ela é uma estrutura do mundo exterior. [3] A tentativa de Thiago de Mello de harmonizar suas intenções com a matéria da poesia abriu, como é evidente, a via de um fracasso.
Considere-se, por exemplo, os versos de abertura de “É Preciso Fazer Alguma Coisa”, do livro Poesia comprometida com a minha e a tua vida (1975):
Escrevo esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com o pacto
que tenho abertamente com a vida.
A abertura é quase comovente, mas acusa um procedimento típico de sua poesia: a ansiedade em escrever, mesmo quando o que está em jogo não é o texto literário. O resultado é a “coisa”: versos que tentam sensibilizar mais pela justeza da causa do que pela natureza da matéria poética.
Sem prever qualquer convulsão social para o Brasil de nossos dias, Num campo de margaridas é a prova de uma desilusão política e, ao que parece, de um engajamento individual e solitário. É um livro que destrói o sujeito plural que Thiago de Mello tanto proclamava. É um caminho: mesmo porque ninguém sabe em que medida a poesia engajada (já que esta é a sua função declarada) serviu de fato ao País. Certos vícios parecem renitentes: acreditem ou não, mas nesse livro Thiago de Mello escreveu
tenho uma canoa que se chama Liberdade
– embarcando a poesia numa canoa furada. Pois nenhuma liberdade justifica a má poesia. Se, com o recente livro, ele estiver mesmo decidido a transferir o engajamento para a sua real solidão, é certo que, aí sim, será possível alguma alvorada. Apesar do próprio Thiago de Mello, ainda é tempo.
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[1] Suplemento Ideias, Jornal do Brasil, 27.12.1986
[2] Encontros com a civilização brasileira, n.1, p.125.
[3] O desenvolvimento dessas ideias se encontra no primeiro capítulo, “Quest-ce que Écrire?”.