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UM POEMA DE RECONQUISTA

Felipe Fortuna
Caderno Ilustríssima
Folha de S. Paulo, 1º de maio de 2016

Basil Bunting (1900-1985) é citado ao menos três vezes n´Os cantos de Ezra Pound. E foi ele – o poeta inglês que escreveu o longo poema “Briggflatts” – quem descobriu uma das mais famosas fórmulas literárias para a poesia, mencionada pelo poeta norte-americano no livro ABC da literatura (1934): Dichten = condensare, poesia = condensar. Único representante do modernismo na poesia britânica, Basil Bunting é uma avis rara que exerceu notável influência entre poetas da sua geração, mas ainda se encontra escassamente divulgado na sua língua e permanece, no Brasil, pouquíssimo conhecido, mesmo entre aqueles atraídos pela vanguarda literária.

image1“Briggflatts”, a obra culminante de Basil Bunting, foi publicada em 1966. Entre nós, poetas e críticos como Nelson Ascher e Gerardo Mello Mourão situam o poema de 717 versos entre os mais importantes da literatura mundial – como de resto o fazem numerosos especialistas em relação a esse poema que é, na definição do seu autor, uma autobiografia. O crítico Hugh Kenner considera que o primeiro verso de “Briggflatts” (Brag, sweet tenor bull, “Gaba-te, doce touro tenor,”) é “a mais forte abertura de um poema” depois do primeiro verso d’Os cantos de Ezra Pound: And then went down to the ship, “E então descemos para a nau”.

O nome Briggflatts é cheio de sentidos: refere-se ao vilarejo localizado na Inglaterra, ao norte dos Peninos, onde o poeta viveu um encontro amoroso no início da sua adolescência – descrito já na primeira seção do poema. Briggflatts alude ao lugar de nascimento da seita Quaker no país, que exerceu influência sobre o poeta. Por fim, “Briggflatts” se define como “um poema de retorno, depois de longas temporadas em terras exóticas (…), uma celebração das origens, do sangue remoto e ancestral, e da paisagem natal”, como bem descreveu o crítico Herbert Read. Sutilmente se enredam, assim, os sentidos amoroso-erótico, de afirmação de fé divergente e da força da memória, que conformam em larga medida todo o poema.

Como já mencionado, “Briggflatts” é também “Uma Autobiografia”: autobiografia de um poeta que, bem entendido, não segue qualquer plano rigoroso ou estritamente factual. A obscuridade e o vigor das referências regionais formam o núcleo do poema e o sustentam do início ao fim. A fim de marcar o seu caráter autobiográfico, o poema “Briggflatts” está dedicado “Para Peggy”: trata-se de Peggy Greenbank, a jovem que deflagra o amor e o erotismo no encontro com o poeta. Numa carta a Louis Zukofsky, de 16 de setembro de 1964, Basil Bunting comenta sobre as múltiplas inspirações para o poema: “Peggy Greenbank e todo o seu ambiente, o vale do rio Rawthey, os cerros de Lunedale, a herança Viking toda desparecida salvo por um fraco odor, a antiga vida Quaker aceita sem pensar e sem suspeitar de que poderia parecer excêntrica: e o que acontece quando alguém deliberadamente rejeita o amor, como então eu fiz – ele busca vingança.” Pode-se assim especular que “Briggflatts” também é uma carta de amor que pede perdão pelo que poderia ter sido e não foi: “uma história interrompida”, que assombra o poeta ao longo de mais de cinquenta anos.

O mais longo poema de Basil Bunting está divido em cinco seções: as seções primeira e segunda, assim como a quarta e a quinta, são indicativas das estações do ano, a começar pela primavera. A seção central do poema – a terceira – narra o episódio do encontro de Alexandre Magno com o Anjo, cuja inspiração provém de uma lenda persa (Basil Bunting foi exímio tradutor desse idioma). Numa das poucas notas a “Briggflatts”, o poeta explica: “Lugares-comuns provêm a estrutura do poema: primavera, verão, outono, inverno do ano e da vida do homem, interrompida no meio e equilibrada em torno da viagem de Alexandre aos limites do mundo e sua futilidade, e selada e assinada no fim por uma confissão da nossa ignorância. Amor e traição são aventuras da primavera, a sabedoria dos mais velhos e a distância da morte, quase nada mais do que uma lápide. No verão não há descanso para a ambição e a luxúria da experiência, nunca final.” O poeta inicia uma viagem logo após haver rejeitado o amor casualmente surgido, afastando-se também de sua casa e da terra onde nascera. Essa viagem afinal equivocada obrigará o poeta a enfrentar muitas vicissitudes: a sociedade urbana, as mulheres que surgem sem amor, a vida no estrangeiro, o jornalismo, a literatura e a guerra.

A estrutura de “Briggflatts” não se limita, porém, às cinco seções constituintes do poema: também está relacionada a uma noção bem peculiar de musicalidade. Em alguns comentários sobre o poema – e na seção IV – o poeta menciona a importância da música de Domenico Scarlatti para a composição de “Briggflatts”, em especial as sonatas. Em linhas gerais, a influência do músico italiano resultaria em muita condensação, simplicidade de expressão, habilidade sem vaidade: “É tempo de considerar como Domenico Scarlatti / condensou tanta música em tão poucos compassos / sem jamais uma volta complicada ou cadência congestionada, / jamais uma vanglória ou um olha-só; e estrelas e lagos / o ecoam e o bosque tamborila seu ritmo, / picos nevados se elevam ao luar e ao crepúsculo / e o sol nasce numa terra reconhecida.

A confissão derradeira dessa autobiografia poética está registrada nos versos em que o poeta comenta o acontecimento amoroso ocorrido há cinquenta anos, que permaneceu intacto, no entanto, na sua emoção pura: She has been with me fifty years, “Ela tem estado comigo cinquenta anos”. É o encontro final que encerra o poema: e também a descoberta de que foi o amor sentido no passado que o fez evocar todo o conjunto da história da Nortúmbria, da natureza da sua região e, sobretudo, do trauma da perda. Camadas superpostas também feitas de língua local, da sonoridade de cada palavra, do sotaque e da entonação presentes em cada sílaba. Se for possível definir um sentido para “Briggflatts”, deve-se recorrer a uma noção ideal de palimpsesto e de técnica de composição, pois o poeta evoca, a todo momento, aspectos da musicalidade e do léxico, da história e da memória pessoal, da natureza e das viagens para compor o painel vasto da sua terrível conclusão: a de que ele havia perdido o grande amor da sua vida.

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