O que Heloísa Buarque de Hollanda denomina “uma antologia dos anos 90” se apresenta ao leitor com diversos limites e numerosas contradições. [1] No prefácio de Esses Poetas, a antologista afirma que o seu critério inicial “foi o de reunir autores que começaram a publicar formalmente a partir de 1990.” Informa, ainda, que seu trabalho “não se pretende uma amostragem exemplar da poesia de um período ou de uma geração” e, no último parágrafo, confessa que “não me interessaram todas as vozes que poderiam ser consideradas por revelarem um bom desempenho literário.” O leitor aprende, talvez chocado, que a antologia não se preocupa com amostragem exemplar, nem com bom desempenho. E vale acrescentar: Esses Poetas contradiz a idéia mesma de que se produziu uma “antologia dos anos 90”.
Uma importante contradição da antologia está no fato de reunir desde poetas com 23 anos, como Felipe Nepomuceno, até com 53 anos, como Antonio Cicero. Dificilmente os dois poetas poderiam pertencer à mesma geração, à mesma sensibilidade e, por conseguinte, representar vozes importantes dos anos 90. O conceito de geração literária é relevante em qualquer caracterização cronológica ou de período. Num estudo recente sobre a poesia da geração 60, Sincretismo (1995), Pedro Lyra demonstrou o que existe de genealógico e de histórico na formação do conceito de geração. [2]
É também incompreensível o que a antologista quis ao explicar que só reuniu autores que começaram a publicar formalmente a partir de 1990. Se por “formalmente” se entende o suporte do livro (e não a reprodução mimeografada ou a colaboração esparsa na imprensa), então não deveriam estar presentes em Esses Poetas Arnaldo Antunes, Nelson Ascher, Valdo Motta, Lu Menezes e, possivelmente, um ou dois outros. Todos esses poetas não apenas publicaram livros antes de 1990, muitas vezes com tiragens superiores às suas edições mais recentes, com também mereceram resenhas e algum reconhecimento.
Tanto quanto me é possível analisar, o prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda é um fracasso crítico que só muito raramente se tem a oportunidade de ler. Chega mesmo a ser ofensivo à inteligência, uma vez que contradiz os critérios que concebe. Primeiro exemplo: afirma existir uma “quase equivalência entre homens e mulheres no mercado de poesia”, mas só inclui em Esses Poetas 4 mulheres no total de 22 vates. Segundo exemplo: escreve a risível sentença “a poesia negra, ainda que não dominante, pode também agora ser notada com maior nitidez”, e inclui dois poetas de cor de pele negra em sua antologia, o que parece representar o seu entendimento de “poesia negra”. Terceiro exemplo: informa o aparecimento da “sensibilidade judaica” e do homossexualismo, que me permitirei deixar sem comentários, diante do ridículo.
Ocorre que Heloísa Buarque de Hollanda não é crítica literária e muito menos milita na avaliação de livros de poesia. O seu desejo de organizar antologias surge, como indica seu prefácio, de um impulso que a fez sentir-se “impelida” a “identificar sinais do que poderia ser um novo momento literário ou poético”, sempre que percebe consenso “a respeito de quedas de vitalidade na produção cultural.” Se nos últimos 20 anos tivesse exercido alguma contribuição à crítica poética, como o fazem Ivan Junqueira, Antonio Carlos Secchin, Augusto Massi, Nelson Ascher, entre outros, talvez fosse possível conhecer quais são as suas idéias sobre poesia.
Na falta de critérios e de posicionamento crítico (e não “posicionalidade”), não se encontra menção a um só poeta no prefácio de Esses Poetas, nenhuma referência a um estilo ou a um autor que apresente uma contribuição pessoal. Apenas Carlito Azevedo é nele mencionado, mas porque teria definido uma fecunda idéia ao afirmar que a literatura de invenção é “a literatura que busca, em certos materiais, a linguagem.” Apesar disso, Heloísa Buarque de Hollanda, na ausência de um só poeta que lhe pareça mais relevante, afirma lapidarmente que “a poesia 90 não deixa mais entrever, com clareza, nem seus modelos nem uma linhagem literária coerente (…), pois “é uma poesia preocupada apenas em encontrar a própria voz.” Ora, e qual poesia não tem essa preocupação?
Os poetas que se cuidem: deverão escapar ao destino de uma antologia que mais se assemelha a um estigma. Ao resenhar o livro The best American poetry – 1996, Harold Bloom mostrou perplexidade ao encontrar “um exemplo monumental dos inimigos do estético.” O livro lhe pareceu “tão ruim que chega a ser inacreditável. Segue os critérios do momento: o que mais conta é a raça, o gênero, a orientação sexual, a origem étnica e as intenções políticas do suposto poeta.” [3]
E alguns dos poetas de Esses Poetas nem precisariam desses artifícios. Alberto Martins escreve poemas de observação aguda, como “O Cardume” e “Retrato”, com ironia nas entrelinhas:
Mas seus olhos recortam da foto
o resto do corpo: um jeito
marcadamente torto de estar. (p.28)
Claudia Roquette-Pinto permeia seus poemas de um tom intimista e freqüentemente erótico, e comparece com versos de extremo cuidado com a linguagem e metáforas corporais, como se pode observar em “No Éden”, “Fait-Accompli” e, sobretudo, “Poema Submerso”:
ei-lo ao pé da frincha que
borbulha (esbugalha?)
roxo incha e mergulha em
brasa estala
e agora murcha
peixe-agulha e
vaza
vaza (p.116)
Arnaldo Antunes exibe os inteligentes trocadilhos visuais que caracterizam sua poesia, marcadamente influenciada pelo concretismo, embora não pareça um diluidor ou um epígono. Nelson Ascher, por sua vez, representa o poeta com maior domínio das técnicas do verso e do sentido histórico e lingüístico do poema: “Nação de Pária”
(…) meu páreo
não é bem este e,
como da peste,
corro por fora,
enquanto a esfinge
feroz nem finge
que me devora. (p.242)
e “A Estátua de Wallemberg” são poemas de exemplar densidade, muito distantes dos simples registros que se encontram tediosamente em tantos outros poetas da antologia. Rodrigo Garcia Lopes e Vivien Kogut encontram-se provavelmente numa etapa inicial da produção poética. Nele já se percebem, porém, qualidades ainda hesitantes entre o verso longo e o curto, como em “Soft Rain, High Grain”:
trago orquídeas mínimas,
um gosto, um clima,
perdido entre o erro e a rima
êxtases, ideogramas, essas minúcias
de pedra rara em ímã, no afã
de vê-la estilhaçar. (p.278)
Kogut certamente precisará expandir a zona de sensibilidade de sua inspiração poética, quase sempre reduzida ao erotismo e à relação algo romântica entre o eu e o outro, como em “Sal”:
No calor eu mordo conchas
tão finas, tão importadas
assim percorro cada coisa tua
corro gemendo nessa curva brava. (p.302)
Os poetas dos anos 90 ou de qualquer outra época deverão arriscar tudo em seus livros, e não esperar que uma antologia de caráter confuso, e até mesmo antiliterário, venha fixá-los ou defini-los segundo “afinidades eletivas”. A poesia sobrevive sem estratégias.
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* Jornal do Brasil, suplemento Idéias, 16.1.1999.
[1] Heloísa Buarque de Hollanda (Org.), Esses Poetas – Uma Antologia dos Anos 90 (Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999).
[2] Pedro Lyra, “Geração: Genealogia e História”, in A poesia da geração 60 (Rio de Janeiro: Topbooks/Fundação Cultural de Fortaleza/Fundação Rioarte, 1995), p.25-41.
[3] “Os Estratagemas dos Ressentidos”, Folha de S. Paulo, suplemento Mais!, 29.11.1998.